quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Visão obscura do automóvel



O romance foi levado ao cinema por David Cronenberg

Décadas antes de começar a discussão sobre se o automóvel será o "novo cigarro" - algo a ser banido num futuro próximo como nocivo à sociedade - J. G. Ballard escreveu Crash, uma visão que vai além do pessimismo.

O livro lançado em 1973 deu origem ao filme de David Cronenberg, 23 anos depois. Mas o texto original é muito mais perturbador. Perversão, escatologia, morte, sexo, drogas e crueldade se misturam. O tempo todo os personagens estão trocando fluidos corporais entre si e com automóveis, e por sua vez sendo manchados por combustível e lubrificante do motor. 

Ballard, personagem homônimo do autor, sofre um grave acidente de carro, em que um ocupante do outro automóvel morre. A partir daí, ocorre a aproximação de Robert Vaughan, um homem marcado por cicatrizes de acidentes, fascinado por desastres que vitimaram celebridades como James Dean, Albert Camus e Jayne Masfield. Vaughan dirige um decrépito Lincoln, mesmo modelo em que foi assassinado o presidente John Kenned, dos EUA, e persegue obsessivamente a ideia de se envolver em uma batida mortal com a atriz Elisabeth Taylor.

Crash é um livro datado, pois houve evolução do automóvel. Os efeitos da segunda colisão - quando os ocupantes do carro são jogados contra superfícies internas - foram muito reduzidos com a evolução dos itens de segurança. Não é mais comum bater contra o volante, menos ainda contra o painel - claro, desde que se esteja usando cinto de segurança.
O vidro laminado do automóvel não estilhaça sobre as pessoas. Mesmo a referência à Varig - a maior parte da história se passa nas imediações do aeroporto de Londres - denuncia a idade do livro.
 

Crash poderia ser um livro mais curto. O texto por vezes torna-se repetitivo e cansativo. Pelo grotesco, seria uma história improvável. Mas basta pensar nas pessoas que insistem em não usar cinto de segurança, ultrapassam em alta velocidade pela direita, levam crianças soltas no banco dianteiro, dirigem em estado de embriaguês avançada. Os Vaugahn estão por aí.

J. G. Ballard nasceu na China de pais ingleses. E passou parte de sua infância em um campo de prisioneiros, até o fim da Segunda Guerra Mundial. Suas lembranças desse período resultaram no romance autobiográfico Império do Sol, transformado em filme por Steven Spielberg.




quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O caminho de Guermantes


A edição traz notas de rodapé que ajudam na leitura

Neste terceiro volume de Em busca do tempo perdido, Marcel Proust substitui seus amores passados pelo fascínio pela duquesa de Guermantes, dama da alta aristocracia francesa, linda, culta, esnobe. Mais velha do que o jovem admirador, ela o ignora nos "encontros" tramados por ele nas ruas de Paris.

Boa parte da narrativa, porém, é ambientada nos suntuosos salões da elite parisiense, disputado por aristocratas de toda a Europa. Proust consegue ser aceito nas recepções da duquesa, que vive um casamento fracassado mas não perde a pose no ambiente fútil de seus chás e jantares. 

Fofocas, intrigas, bastidores do mundo dos teatros e das cortesãs, maneira elegante de chamar as prostitutas, como hoje se fala em garota de programa. Nada escapa ao autor, atento ao rococó dos olhares e gestos, à arrogância, inveja e despeito que permeava as relações nas grandes recepções.

O autor dedica uma página e meia à descrição do gestual quase ritualístico para os Guermantes apenas cumprimentarem alguém. Havia como que uma coreografia de maneiras afetadas para cada "subgrupo" da família, que envolvia passos, olhares e gestos de diferentes variações de esnobismo.

Proust elogia trajes e se fascina com algumas situações, mas não passa o tempo todo deslumbrado. E sabe ser bem maldoso e ferino nos comentários, como quando compara a presença e trajes da duquesa com a senhora de Cambremer "com um penacho de carro fúnebre verticalmente erguido nos cabelos". E tem suas tiradas de humor, como ao falar do marquês de Palancy, que parecia estar "dormindo, nadando, pondo um ovo ou simplesmente respirando".

A leitura de O caminho de Guermantes fluiu melhor para mim do que nos dois primeiros livros, possivelmente por estar mais habituado ao estilo de Proust e vários dos personagens já serem conhecidos. As notas de rodapé da edição da Editora Globo ajudam a contextualizar pessoas reais citadas pelo autor, ou aquelas que lhe serviram de referência. Há frequentes alusões a memórias de escritores e aristocratas do passado, citações e referências a textos literários, principalmente Victor Hugo. E um bom espaço dedicado à discussão sobre o caso Dreyfus, célebre episódio de acusação de traição e uma onda anti-semita na França. A tradução é de Mario Quintana.

Além de dissecar alma e exterior dos personagens, Proust põe sua sensibilidade e capacidade descritiva a serviço de obras de arte - principalmente pinturas - que surgem ao longo de O caminho de Guermantes. Suas observações acerca de um quadro equivalem a uma aula sobre arte. Curioso também como o tempo passa, a tecnologia oferece novas alternativas, mas os hábitos não mudam. Na referência a uma pintura, o autor fala como o personagem fica feliz apenas porque jantou com alguém cujo antepassado foi retratado em quadro.

Há momentos tocantes, como a doença da avó do autor, uma de suas pessoas mais queridas. Ela também dá ensejo para Proust falar sobre uma novidade, o telefone. A tentativa de  conversar com a avó pelo aparelho, um canal ainda precário, não é nada fácil, mas a descrição da nova tecnologia é poética.

Se gostei de O caminho de Guermantes? Muito. Ainda não cheguei à metade de Em busca do tempo perdido, mas já deu para sentir porque os leitores se deixam fascinar pela obra de Marcel Proust.

Curiosidade Mórbida

Lançamento do original foi em 2003

Esse livro poderia ser muito mais interessante, mas o resultado das pesquisas e escrita da autora é desigual. Há capítulos muito esclarecedores sobre o uso do corpo de pessoas mortas para doação de órgãos, no ensino da medicina, na pesquisa e para o avanço do conhecimento, por exemplo, sobre recursos de segurança que podem salvar vidas em acidentes de carro ou avião.

Em muitos trechos, porém, Mary Roach desvia-se do tema principal. Põe o foco - superficialmente - em uma pesquisa sobre crucificação - e d
eixa de lado hábitos culturais como "montar" uma foto de família com uma pessoa morta, ou o Dia de Finados em localidades da África e da América.

E, pior, a autora insiste em fazer humor. Falha miseravelmente. Nunca perde o respeito pelos mortos, um compromisso que assume logo nas primeiras páginas, e cumpre. Mas suas tentativas de fazer graça não funcionam. Fiquei com a impressão de que nesse livro a intenção de Mary Roach foi mesmo explorar a morbidez.




domingo, 27 de dezembro de 2015

Romance de formação

Romance de estreia do autor

Como é bom ler um livro para prestigiar um amigo e poder falar, sem preocupação em poupar sua autoestima: gostei! Linha verde é definido pelo próprio autor como um romance de formação. Ocorre que Vinicius Galera trabalha a pouco metros de onde eu sento, e seria algo constrangedor não gostar da leitura (já aconteceu...). 

Nascido em uma cidade do interior paulista, Ivan vem para a capital tentar a sorte profissional. Uma história comum, mas muito bem contada em primeira pessoa com momentos inspirados. Namoradas, flertes, empregos, roubadas, pombos e até um leão se alternam diante do jovem Ivan em suas andanças pela cidade.

A leitura é ágil, agradável e reserva episódios desconcertantes. Ivan sonha ser um escritor, e aí está um desafio solitário e quase egoísta. Nada ou alguém garante que sua obra será publicada um dia, isso é muito raro. Vinicius Galera encarou o desafio com talento.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

"Essa máquina mata fascistas"




A história é quase “comum”: infância marcada por tragédias, como incêndios nas casas onde morou, internação da mãe por força de uma doença neurológica, adolescência difícil no período da grande depressão econômica nos EUA. Uma vida nômade, de cidade em cidade atrás de empregos, viajando clandestino como “vagabundo de trens”, colhendo frutas na próspera Califórnia.

Mas Woody Guthrie somou seu talento nato como músico e poeta à experiência de vida para compor centenas de músicas que, entre outros assuntos, falam da vida no campo, política e até temas infantis. Influenciou gerações de artistas, como Bob Dylan, Bruce Springsteen e Joan Baez. Em seu livro de memórias Crônicas - Volume Um, Dylan cita com frequência Guthrie, a quem visitava no hospital na fase final de sua vida.

Woody Guthrie começou a gravar, apresentava-se em público e improvisava canções. Sua canção mais conhecida, This land is your land, tem cunho político e social, e foi composta como uma resposta crítica a God bless America, que Guthrie classificava como “irreal e complacente”. Seu violão ostentava a inscrição "Essa máquina mata fascistas".

Guthrie morreu em 1967, aos 55 anos de idade, vítima de uma doença neurológica degenerativa que provavelmente já havia afetado sua mãe. Além de sua extensa obra musical, achou tempo ainda para escrever um livro de memórias, Bound for glory. Diferentemente de outros jovens astros que surgem por aí, Guthrie já tinha muito o que contar aos 31 anos. E talento de sobra para isso, em um texto sensível, por vezes divertido, que flui como um longo poema.

Bound for glory não foi traduzido para o português. A obra pode ser comprada em livrarias na internet, em inglês. Mas experiência interessante é ouvir a versão audiolivro, gravada por Arlo, um dos oito filhos de Guthrie. Seguidor dos passos de Woody, Arlo compõe e interpreta principalmente músicas folk de cunho social. Como bônus, além das inflexões de voz que Arlo conhecia tão bem de seu pai, ouve-se um trecho da original Bound for glory, a música que dá título ao livro.




A versão audiolivro é narrada por Arlo Guthrie, filho de Woody

domingo, 20 de dezembro de 2015

Se você é impressionável, não leia sozinho

Entre outras obras, livro inspirou de Arquivo X a Prometheus

Nem todo texto de Howard Phillips Lovecraft seduz o leitor que se dispõe a conhecer sua obra, que passou por fases bem oníricas. A fim de apreciar melhor as “viagens” do autor, vale começar por um título como Nas montanhas da loucura, publicado em fascículos em revistas populares em 1931.

O livro traz o relato, feito em primeira pessoa, de uma expedição científica à Antártica. Bem ao estilo do autor, é um sobrevivente que relata os resultados da incursão a territórios antes inexplorados, e que, defende o narrador, devem se manter assim para o bem da humanidade.

O tom de alerta se justifica porque os pesquisadores que voaram em direção ao pólo sul se defrontam com montanhas gigantescas, guardiãs de segredos de civilizações que antecederam a humanidade em milhões de anos. Depois que os contatos por rádio silenciam, o narrador vai em busca do local do acampamento, onde encontra morte e destruição em meio a montanhas e construções arquitetônicas titânicas.

A exploração de túneis colossais vai revelando vestígios de civilizações ancestrais. Enquanto a interpretação das obras arquitetônicas e esculturas vai revelando a terrível guerra entre alienígenas que chegaram ao planeta e se dividiram entre o fundo dos oceanos e a terra firme, odores e galerias misteriosas permitem descobrir o trágico destino dos exploradores desaparecidos.

O clima criado pela narrativa de Lovecraft mais do que justifica o fato de tantos autores de livros e filmes se inspirarem livremente em sua obra. No ambiente gelado e desértico das regiões mais remotas do continente antártico, surge boa parte da mitologia criada pelo autor. Criaturas de formas, tamanhos  e organismos desconcertantes como Mi-gos, Cthulhu, Celephais e Innsmouth são apresentados ao leitor.

Se você gosta de ficção científica e admira a obra de Lovecraft, não perca mais tempo. Essa história é um deleite. Se você é muito impressionável não deixe para ler Nas montanhas da loucura quando a família inteira viajou e está sozinho em casa.





domingo, 22 de novembro de 2015

Nabokov não é só Lolita

O livro foi publicado no Brasil com essa bela capa, e o título em uma cinta

Vladimir Nabokov nasceu russo, tornou-se cidadão norte-americano e morreu na Suíça. É sempre lembrado por Lolita, seu romance que se torna mais polêmico à medida que o tempo passa. Mas Nabokov escreveu muito, textos sensíveis e sempre encantadores como nos contos reunidos em Detalhes de um pôr do sol, coletânea lançada pela Companhia das Letras em 2002. 

Os 13 contos foram escritos no período em que o autor viveu como um emigrado em Berlim, entre os anos 1924 e 1935. A antologia foi organizada pelo próprio Nabokov, a partir de suas narrativas curtas publicadas em jornais de imigrantes na cidade alemã, e também em Paris e Riga. 

Em Detalhes de um pôr-do-sol (como é grafado na capa no ano de sua publicação, antes da reforma ortográfica), o ainda jovem escritor - um a mais entre tantos emigrantes - desenvolve situações e temas melancólicos, como um marido apaixonado surpreendido pela viuvez em plena lua de mel.

Como o acaso cruza e determina os rumos da vida de uma pessoa - ou seu fim - aliás, é tema recorrente ao longo das narrativas. Exemplo é o belíssimo conto Natal, em que a dor pela perda de um filho é confrontada pela força da natureza na véspera da principal festa dos cristãos.

"A insensatez do acaso é a lógica do destino. Como não acreditar no destino, na infabilidade de suas insinuações, na teimosia de seus desígnios, quando suas linhas linhas negras aparecem insistentemente sob a caligrafia da vida?" - reflete o autor em Um homem ocupado.

Mas nem tudo é tristeza, como se pode constatar no interessantíssimo diálogo entre escritor e crítico, em O passageiro. Nabokov localiza cada conto no tempo e no espaço de sua criação e localização. E ainda dá saborosas informações sobre seus métodos de escrita: "... de fato usei uma caneta (pois nunca aprendi a escrever à máquina, e o longo reinado do lápis 3B, com uma borrachinha na ponta, só teve início muito depois - em motéis e carros estacionados)...".

Doze das treze narrativas de Detalhes de um pôr do sol foram traduzidas do russo para o inglês pelo próprio autor com a colaboração de seu filho, Dimitri Nabokov. A tradução para o português é de Jorio Dauster.



quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Detalhes de um pôr do sol

"Acho que aí reside o sentido da criação literária: retratar objetos triviais tal como se refletirão nos espelhos benévolos dos tempos futuros; encontrar nos objetos a nosso redor a ternura perfumada que só a posteridade saberá discernir e apreciar nos dias longínquos em que cada insignificância de nossa vida cotidiana se tornará estranha e festiva: a época em que um homem envergando o mais ordinário paletó de hoje estará pronto para participar de um elegante baile a fantasia."

Vladimir Nabokov, Guia de Berlim, 1925  

sábado, 17 de outubro de 2015

Pense fora da caixa

Receitas para ser mais criativo
Qual seria a maneira mais eficaz de converter a cobrança de um pênalti em gol?

Mesmo quem só vê futebol em Copa do Mundo sabe que a "penalidade máxima" pode decidir campeonatos (Zico, Roberto Baggio e Palhinha que o digam). Olhando pela perspectiva de quem tem de evitar o gol, O medo do goleiro diante do pênalti é um filme de Wim Wenders de 1971, baseado em roteiro do escritor austríaco Peter Handke.

Lamento pelos goleiros, mas queremos fazer o gol. E Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner baseiam-se na análise dos fatos bem à maneira "freak" que os consagrou para concluir que o ideal é, friamente, chutar a bola no centro do gol, onde o goleiro aguarda. Ele não vai estar mais lá, e a bola entra.

O jornalista e escritor Dubner e seu parceiro, o economista Levitt, seguem a linha de Freaknomics e SuperFreaknomics em Pense como um Freak - Como pensar de maneira mais inteligente sobre quase tudo, seu lançamento mais recente. Como no livro de estreia, em 2005, o subtítulo "O lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta" já resume a proposta da obra da dupla.

Quem acompanha o trabalho dos dois pode não se animar muito com a leitura do novo título. Vários dos temas vem sendo explorados pela dupla em publicações no blog e podcasts. As ideias não surpreendem como quando ouvidas ou lidas pela primeira vez.

A proposta de Pense como um Freak, no entanto, é mais a de orientar o leitor sobre como sair do lugar comum, evitar as conclusões óbvias e ser mais criativo. Sim, lembra autoajuda em muitos momentos, mas o fato é que Levitt e Dubner são originais, criativos e, não raro, polêmicos, ao abordar questões como o aborto ou levantar a discussão sobre se os jovens deveriam pagar de volta aos pais a educação que receberam.

Logo no começo do livro, os autores alertam para a armadilha de nos apegamos ao que acreditamos, nos fechando para as novas ideias que contrariam nossas crenças e certezas. É sempre bom ser lembrado disso. "Divertir-se no trabalho" e "ver os problemas de perspectivas diferentes" são "dicas" da dupla que você já pode ter lido ou ouvido muitas vezes.

O livro se torna mais saboroso quando sugere estarmos atentos à "hora de desapegar", nos lembra quão eficiente pode ser "contar histórias" ou pensar e agir como as crianças. Elas, afirmam os autores, não têm medo de sizer "não sei", pensar no óbvio, não reagem a dogmas como os adultos e são naturalmente curiosas.

Em tempo: Albert Camus e Vladimir Nabokov, dois escritores muito admirados por mim, foram goleiros em algum momento de suas vidas. Melhor que tenham se tornado referência por seu talento na escrita, e não pela habilidade com a bola. Prefiro contar com seus livros na estante.

sábado, 3 de outubro de 2015

Iniciação ao medo

O capricho na edição aumenta o prazer na leitura deste livro 


Não, essas cinco histórias não chegam a tirar o sono. Caso você esteja entre as pessoas que nunca leram um livro de Clive Barker ou Stephen King por receio de não conseguir dormir à noite depois, essa deliciosa antologia é a perfeita iniciação com alguns autores quer fizeram a diferença na literatura.

Todos são de lingua inglesa: Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft, Phil Robinson, Ambrose Bierce e H.G. Wells, traduzidos por Martha Argel Rosana Rios. Apreciadoras da literatura fantástica, as organizadoras da antologia assinam ainda uma breve introdução que analisa o gênero e suas origens. A edição da Farol Literário imita um livro envelhecido, com belas ilustrações de Samuel Casal.

Em Contos de Suspense os autores exploram nossos medos mais primitivos, como a escuridão, as serpentes, o desconhecido. Habilmente, as tramas nos levam a perceber como o horror quase sempre está em nossa imaginação, e não no sobrenatural. Quase sempre.

O livro tem várias notas de rodapé que localizam o leitor no tempo e nos costumes da época em que se passam as histórias. Chegam a mostrar algumas incoerências nos relatos, mas há um certo exagero ao trazer o significado de algumas palavras em português de uso menos frequente. Há ainda uma breve biografia de cada autor.

Se você não é extremamente sensível, vai conseguir dormir depois de ler Contos de Suspense. E dormir com a gostosa sensação de ter desfrutado pouco mais de uma agradável hora em uma boa leitura.

sábado, 26 de setembro de 2015

Para amar. Ou nem começar a ler

Alguma edições reuniram os quatro títulos da saga

As brumas de Avalon fez um enorme sucesso quando foi lançado, há pouco mais de 30 anos. Ficou semanas entre os mais vendidos do The New York Times, despertou grande interesse também no Brasil e virou longa metragem no cinema. Agora que sagas caíram nas graças dos leitores, era mais do que tempo de ler minha edição que ficou aguardando todo esse tempo na estante.

E não gostei do que li.

Marion Zimmer Bradley já era conhecida por leitores de ficção científica quando resolveu partir para uma visão nova de Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda. E recontar a lenda sob o ponto de vista feminino foi sua grande sacada. A fascinante e poderosa espada Excalibur esteve sempre associada ao universo masculino, aos bravos guerreiros como Uthar Pendragon, Arthur, Lancelote e Cai. Mas e as mulheres nessa história?

Morgaine, Gwenhwyfar, Igraine, Morgoise, Raven e tantas outras nobres e sacerdotisas, mais do que ganhar voz, tornam-se protagonistas de momentos-chave e determinam os rumos da saga. Agentes ou vítimas das ações, envolvem-se em tramas políticas, golpes, discussões teológicas, adultério, magia e assassinato.

As brumas de Avalon - título ótimo e inspirado para a obra - na verdade reúne quatro livros: A senhora da magia, A grande rainha, O gamo rei e O prisioneiro da árvore. Dependendo da edição (um ou quatro volumes), são de 800 a mais de mil páginas, espaço suficiente para a autora se perder em diálogos intermináveis e repetitivos.

As ondas de invasão dos saxões às ilhas britânicas provocou a saída do decadente Império Romano entre os anos 400 e 500, deixando a resistência por conta dos nativos bretões. Esse é o pano de fundo militar para As brumas de Avalon. Mas há pouquíssima ação. Embora seja um período de batalhas constantes, a autora opta por descrever apenas combates em festivais. Porque ali as mulheres estão presentes e sofrendo por seus filhos e amantes.

O conflito mais interessante fica por conta da disputa entre os que abraçaram o cristianismo trazido pelos romanos e os que ainda seguiam antigas religiões pagãs, seus druidas e sacerdotisas.
Avalon, uma ilha lendária, era o centro e abrigo das antigas crenças, onde é feita a doutrina de Morgaine, mulher independente e determinada. Sua grande antagonista é Gwenhwyfar, retratada como uma católica fundamentalista e de caráter fraco.

Guerra e conflito religioso já segurariam uma excelente trama, porém Marion Bradley inclui incesto, eutanásia e homossexualismo. Fica fortemente sugerida (no mínimo) uma atração entre Lancelote e Arthur, e Morgaine e Raven, sacerdotisa de Avalon que fez voto de silêncio. Alguns momentos trazem uma boa carga de erotismo. O melhor momento do livro é quando sexo se mescla à magia em uma trama de vingança.

Por que, então, com tantos elementos e calcado em uma lenda fascinante, As brumas de Avalon talvez não mereça seu tempo? Com certeza, não porque as muitas e repetitivas sagas à venda hoje sejam melhores, mas porque Marion Bradley arrasta demais seu texto. A autora, em muitas ocasiões, parece estar escrevendo o roteiro de uma novela fraca que precisa ficar dez meses no ar - e não tem conteúdo para seis. Os quatro livros que compões a obra poderiam ser dois.

As mulheres - que supostamente deveriam ser fortes nessa versão da lenda - perdem-se em reflexões sobre culpa e arrependimento. Pensam que querem muito algo (ou alguém), para no momento seguinte sofrer com o pensamento. Guinadas de amor para ódio - e vice-versa - são frequentes. Os romanos foram embora da Bretanha, mas deixaram a culpa cristã como herança.

domingo, 20 de setembro de 2015

Pinhead está nas livrarias

Pinhead, um dos personagens mais assustadores da literatura de horror

Vampiros, lobisomens, mortos-vivos e múmias frequentam a imaginação das pessoas muito antes de a literatura fantástica se popularizar. Mitos antigos, esses seres ganharam relevância com a obra de Bram Stocker, Mary Shelley e o cinema. Mas os Cenobitas de Clive Barker, com suas cicatrizes, mutilações e perversidade, inovaram o gênero horror. "Eu vi o futuro do Horror... E seu nome é Clive Barker", disse Stephen King, em uma declaração muitas vezes citada.

O responsável por todo esse impacto é Pinhead, pálido, grotesco e cruel líder dos Cenobitas em The hellbound heart, novela que acabou originando uma série de filmes. O primeiro deles, Hellraiser - Renascido do Inferno, teve roteiro e direção do próprio Clive Barker. Assistir ao filme de 1987 hoje é estranhar roupas e penteados, mas Hellreiser é uma história que não envelhece.

A trama gira em torno de um cubo sugestivamente conhecido como Configuração do Lamento. Em troca da alma do interessado, decifrar o enigma do cubo abre portais para prazeres sem limites. Abre também caminho para a entrada dos Cenobitas, em uma dimensão onde dor e prazer, sensualidade e sadomasoquismo se confundem. Queira a pessoa que manipulou o cubo ou não. Não há espaço para arrependimentos.

Renascido do inferno resultou uma sequência de sete filmes no total, várias histórias em quadrinhos, inspirou outros artistas, personagens de cinema e bandas de rock. Mas, surpresa, a novela original só consegui achar em inglês. A editora Civilização Brasileira lançou os Livros de Sangue de Barker nos anos 1990, mas só agora a editora Darkside põe no mercado Hellraiser - Renascido do Inferno, no trigésimo aniversário do lançamento do título.

A "edição para colecionador" tem capa dura e custa R$ 49,90
Como tem sido característico da editora, o livro de 160 páginas chega em duas apresentações, brochura e capa dura, com tradução de Alexandre Callari. 

Ouvi recentemente uma entrevista com Clive Barker, recuperado após um longo período em coma, resultante de uma ida ao dentista. Voz abatida, traduzindo um enorme esforço para falar, o inglês de 62 anos de idade que elegeu Los Angeles como casa, mantém uma coleção de cobras, aranhas e ratos. Quanto dessas excentricidades alimentam sua imaginação eu não sei, mas quem gosta do gênero Horror precisa ler sua obra.

sábado, 12 de setembro de 2015

Poema em quadrinhos

Dino Buzzati convida a revisitar o mito de Orfeu e Eurídice
Dino Buzzati confessou certa vez sua frustração por não ter sido reconhecido como artista plástico. Não deixou por menos: além de seus contos e novelas fascinantes, deixou Poema em quadrinhos, em que, através dos personagens Orfi e Eura, recria o trágico mito de Orfeu e Eurídice, da antiga Grécia.

Orfi desce ao mundo dos mortos em busca de sua amada. Lá, encontra o Diabo representado de maneira muito original por Buzzati, sofre tentações, experimenta reflexões e, como no mito grego original, se vale de seu talento musical.

Jornalista e escritor, Buzzati mata sua vontade e faz literatura gráfica de alta qualidade, recontando o antigo mito com trechos e traços que vão do pop ao surrealismo, temperado com erotismo e alguns momentos no estilo de Robert Crumb. Apaixonado pelas montanhas e alpinista praticante, o italiano de Belluno inclui até um momento em que os personagens fazem uma travessia em uma parede de rocha.

A capa segue a linha da provocação do autor
Lançado em 1969, Poema e quadrinhos foi editado no Brasil pela  Cosac Naify em 2010, com tradução de Eduardo Sterzi e uma provocante capa rosa de Maria Carolina Sampaio.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Relatos de amargura

Leitura de preferência para quem não está em depressão

Escritora premiada, professora universitária de prestígio, cotada para o Nobel de Literatura, Joyce Carol Oates ainda encontra tempo para ser muito produtiva: publicou mais de 40 obras desde 1963, quando seu primeiro livro foi lançado. É também uma boa demonstração de que quantidade não equivale a qualidade.

Sourland foi lançado em 2010, e preserva as principais características de Oates: textos muito bem escritos que dissecam os sentimentos mais profundos dos personagens. Mas os 16 contos do livro não estão entre os melhores da autora.

Mais uma vez, os personagens centrais são mulheres, e as histórias envolvem violência sexual. Impossível não notar a inspiração na obra de Shilrley Jackson, autora, entre outros, do clássico The hounting of hill houseOates é admiradora confessa da escritora morta em 1964, e editora do seu volume na coleção The library of America

Oates é dona de um estilo mórbido, violento e chocante, como quando constrói o momento de um estupro, a transição de uma cena doméstica banal em torno de um copo de vinho para a violência despertando no comportamento psicótico do atacante.

Há muita criatividade envolvida nas histórias, como uma assustadora "aparição" de uma cabeça de abóbora. Mas as narrativas são repetitivas, e algumas tramas são pouco conclusivas.

Sourland é para aqueles fãs incondicionais que fazem questão de ler tudo de seu autor preferido. Mas há obras mais indicadas para quem ainda não conhece Joyce Carol Oates, como Mulher de barro e Descanse em paz, este reunindo relatos sobre os últimos dias de cinco grande escritores.

sábado, 22 de agosto de 2015

Decepção

A "nova obra" de Harper Lee ainda não tem título em português

55 anos após o lançamento de O Sol é para todos, Harper Lee anunciou o lançamento de sua sequência, que na verdade, conta a autora, havia sido escrita antes. Ao longo de todo esse tempo, To kill a mockingbird, título original da obra, ganhou um prêmio Pulitzer, foi transformada em filme de sucesso e nunca deixou de vender e emocionar de estudantes secundaristas ao público geral dos Estados Unidos.

O anúncio de Harper Lee despertou uma nova onda de interesse por sua obra de sucesso. O sol é para todos ganhou novas edições, inclusive no Brasil. Um livro tocante e de leitura deliciosa, embora incômoda pelo tema. Daí a decepção com Go set a watchman, título extraído de uma citação da Bíblia e ainda sem tradução para o português.

Segundo a autora, o novo título seria um rascunho de To kill a mockingbird. Como Go set a watchman se passa 20 anos após os episódios de O Sol é para todos, a comparação é inevitável, assim como a expectativa em relação aos personagens. Jean Louise, a travessa e voluntariosa Scout, reaparece com um verniz de Nova York, cidade onde passou a viver. Mas ainda é um personagem reconhecível.


Scout (Mary Badham) e Atticus, seu pai, vivido por Gregory Peck
Quanto aos demais, Harper Lee frusta com mudanças de crenças e valores. Destrói um herói que marcou gerações de leitores. Isso em uma trama confusa, que em muitos trechos se arrasta em diálogos quase incoerentes, e em outros expõe uma desconexão com O Sol é para todos. Afinal, rascunho ou não, ela está falando das mesmas pessoas e situações?

A leitura de Go set a watchman foi despertando um interesse crescente à medida que o fim do livro se aproximava. Fiquei aguardando uma virada na trama. Não posso falar muito, em respeito a quem ainda vai ler o livro. Mas minha experiência foi decepcionante.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Funeral de livros



Um livro bem pequeno, mas só no tamanho físico
No terceiro episódio da terceira temporada de Orange is the new black, A caminho da redenção, há referência a vários livros, cujos títulos são lidos diante das cinzas dos volumes queimados em uma ação contra a infestação de percevejos na prisão. Livros são, aliás, mencionados em vários episódios da série. Mas o fim da biblioteca por conta da praga dos insetos motiva o "funeral" em homenagem às obras sacrificadas.

Queima de livros por nazistas, pela Igreja ou seja lá quem for é sempre um episódio a se lamentar. Mas o destino de uma biblioteca de 20 mil títulos raros é o que surpreende em A casa de papel, livro do argentino Carlos María Domínguez. Em apenas 90 páginas, o autor consegue reunir a paixão pelos livros e pela leitura, erudição na medida certa em uma obra destinada ao grande público e doses de mistério e suspense com uma original história de amor.

A casa de papel, da Realejo Livros, tem tradução e posfácio de Joca Reiners Terron e ilustraçães de Helena Campos. Garantia de algumas horas de prazer para quem ama livros.

sábado, 25 de julho de 2015

Como vivem os mortos

A versão em graphic novel conta com vários artistas
Neil Gaiman se apropria de lendas e tradições antigas, tempera com doses de mistério e suspense e ambienta a trama em um cemitério - lugar que normalmente intimida as pessoas. The graveyard book fala de um espaço em que há, sim, medo e criaturas sinistras, mas também tolerância, reconciliação, amor e conhecimento. Resta saber como o autor vai resolver a intrigante situação de Nobody Owens.

Sete artistas alternam-se nas ilustração dessa versão em quadrinhos. Se, por um lado, isso causa certa estranheza na mudança abrupta de traços com que os personagens são retratados, por outro permite conhecer e comparar a obra de diferentes quadrinistas. Não chega a comprometer o sabor da narrativa em que mortos "levam uma vida" quase normal, e até tem seu dia de festa.

The graveyard book foi publicado em português pela editora Rocco como O livro do cemitério, uma edição ilustrada. A versão em quadrinhos teve a sequência lançada em outubro. A graphic novel é disponível apenas em inglês. 

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Oblómov: ser ou não ser?

Ingênuo, preguiçoso, Oblómov põe sua inteligência a serviço do nada

Iliá Ilitch Oblómov nunca vestiu as próprias meias, mesmo após adulto e sendo saudável. Um servo fez isso por ele desde criança, na Rússia do século 19. Junte-se a essa servidão uma preguiça e falta de atitude diante da vida como poucas vezes retratada na literatura, e o resultado é Oblómov, romance de Ivan Gontcharóv publicado em 1859.

O livro saiu apenas dois anos antes do fim da servidão na Rússia Imperial. Por mais de 200 anos, vigorou um sistema em que camponeses "pertenciam" ao dono da terra. O nobre proprietário podia dispor de seus servos nos trabalhos da lavoura e domésticos; podia mesmo vendê-los junto com o latifúndio.

Iliá Ilitch Oblómov é um desses senhores, mas há muito mora em Petesburgo, vivendo da renda da propriedade herdada dos pais. Além de visitas eventuais de amigos - mais interessados em dinheiro e favores do que propriamente amizade -, tem apenas a companhia de Zakhar, fiel mas rabugento servo. A dupla, espécie de Dom Quixote e Sancho Pança, protagoniza sequências hilárias, o alívio cômico da obra. 

Zakhar passa as primeiras 150 páginas do romance de pouco mais de 700 tentando arrancar Oblómov da cama. A atitude de seu patrão muda pouco ao longo da obra (sim, ele sai da cama!), uma crítica de Gontcharóv ao decadente modelo de concentração de riquezas e terras em uma Rússia que precisa se modernizar.

Oblómov tem a sorte de contar com um amigo de infância, Stoltz, que se esforça a arrancá-lo do marasmo. Entre outros "empurrões", o apresenta a Olga, bela e meiga representante da nobreza russa. Descobrir as consequências desse encontro ficam por conta do seu prazer da leitura.

Em muitos momentos, o livro é pesaroso e melancólico como um russo sabe ser, mesclando a paisagem invernal de uma Petesburgo dividida pelo rio Neva congelado a passagens tristes vividas pelos personagens. Melancolia é um traço dessa obra. Em algum momento, cada um dos personagens é acometido pela angústia existencial.

Li Oblómov em uma bela edição da CosacNaify, com tradução direto do russo e texto introdutório de Rubens Figueiredo. O livro é encadernado em capa dura e traz páginas com estampas usadas pela aristocracia russa. Há ainda um posfácio de Renato Poggioli, crítico italiano especializado em literatura russa. 

Ivan Gontcharóv é um autor injustamente menos conhecido da literatura russa. Li Oblómov por indicação de Juliana Wallauer no Qual é a Boa? do Braincast 129, de 9 de outubro de 2014. Ouvi seu comentário e fiquei atraído pela obra. Não me arrependi.

domingo, 19 de julho de 2015

Mistérios do cérebro

O livro relata desconcertantes manifestações da mente humana

Se ser "normal" já é tão difícil, um acidente ou disfunção mental pode tornar tudo muito complicado para o paciente e as pessoas que o cercam. Mas pode ser, também, que o paciente nem sequer tenha consciência de ser "diferente". E, afinal, o que é ser "normal"? Esse é o tema do neurologista inglês Oliver Sacks em O homem que confundiu sua mulher com um chapéu - e outras histórias clínicas. Lançado em 1985, o livro reúne 24 ensaios sobre casos de perda parcial ou total da memória e problemas mentais como o autismo. 

Os casos são desconcertantes, como a da mulher de 27 anos e dois filhos que perdeu a consciência do próprio corpo: se estivesse sentada e fechasse os olhos, caía da cadeira. Só conseguia se mover com segurança se estivesse olhando para os pés ou para as mãos. Não tinha a capacidade de perceber o próprio corpo, sua localização no espaço, a posição de cada parte em relação às outras. Perdera a propriocepção.

Sem ser sensacionalista ou cair na armadilha do pieguismo, Sacks relata as histórias e tratamentos de pacientes que passaram por seu consultório. Como o caso da mulher de 89 anos que passou a viver uma euforia com a vida, e foi diagnosticada com "a doença do cupido", manifestação de sífilis neurológica contraída 60 anos antes. Ela pede para não ser curada, pois está feliz. 

"Investigamos os problemas físicos e mentais de nossos pacientes, não os seus talentos", comenta o autor no caso da moça alienada criada pela avó. Após a morte de sua tutora, quando tudo poderia dar errado, a jovem já em tratamento se revela excelente atriz de teatro.

O neurologista e autor vive nos EUA há muitos anos. Além de grande médico e pesquisador, é excelente escritor; transforma as histórias clínicas não em curiosidades mórbidas, mas em relatos tocantes que, muitas vezes, questionam a própria ciência e instigam a reflexão. De sua vasta obra, li e recomendo muito também Um antropólogo em Marte, de 1995, que reúne mais casos clínicos extraordinários e contribui para demolir preconceitos. Você pode precisar confiar sua vida a um cirurgião, e gostaria que ele fosse um dos melhores, certo? E se soubesse que ele sofre de uma síndrome que o acomete de tiques mentais e físicos?

A obra de Sacks vem inspirando roteiristas e adaptações para o cinema. Tempo de despertar (1990), com Robin Williams e Robert De Niro, foi adaptado de seu livro lançado em 1997 que tem o mesmo título em português.


Oliver Sacks em foto de 2009 © Luigi Novi / Wikimedia Commons
Oliver Sacks, que completou 82 anos de idade em 9 de julho, recebeu no começo deste ano a notícia de que tem apenas alguns meses de vida. Sofre com a metástase de um câncer em estágio avançado no fígado. Em 19 de fevereiro, publicou um artigo de despedida no jornal The New York Times, em que admite sentir medo, mas afirma que seu maior sentimento é de gratidão:

"Sinto-me intensamente vivo, e quero e espero, no tempo que me resta, aprofundar minhas amizades, dizer adeus aos que amo, escrever mais, viajar, se eu tiver forças, alcançar novos níveis de compreensão e entendimento."

Vale conferir a bela homenagem a Oliver Sacks feita por Maria Popova em seu site Brain Pickings.

domingo, 5 de julho de 2015

Jazz literário

Um livro para ser lido com jazz ao fundo
Várias editoras estão empenhadas na sobrevivência do livro físico, de papel. E é bom que seja assim: se a tecnologia e recursos de gráfica abrem espaço para a criatividade, o bom gosto é determinante. E bom gosto não falta à editora Cosac Naify. O perseguidor, de Julio Cortázar, é apenas um exemplo.
Conto-novela do escritor argentino, O perseguidor tem ilustrações de José Munõz, também nascido na Argentina. Seu traço explora as linhas fortes, o preto e branco contrastante, e influenciou artistas do calibre de um Frank Miller em Sin City, por exemplo.
Cortázar era um fã ardoroso do jazz: tocava trompete em casa apenas para seu deleite. E admirava a obra do saxofonista Charlie Parker, no livro retratado como o delirante e adoentado músico Johnny Carter. A vida caótica do músico em Paris, entre drogas, visões, fraqueza física, saxofones perdidos, surtos, mulheres, divagações e momentos de criatividade genial é acompanhada de perto por um jornalista que escreve sua biografia.
Como nas páginas em que se parece ouvir notas musicais em On the road, de Jack Kerouac, O perseguidor é um livro musical, sem que se veja uma mínima ou semínima impressa. 


José Muñoz retrata a cena do jazz em Paris com inspiração

domingo, 21 de junho de 2015

Onde foram parar os discos voadores?

O livro questiona várias crendices
Os alienígenas parecem ter ficado tímidos com a ameaça à sua discrição e privacidade. Hoje há mais celulares do que gente no Brasil. Nem todos são smartphones, mas a maioria tem câmeras. Brasileiros adoram fotografar e compartilhar imagens, mas, apesar de toda essa facilidade de capturar um flagrante, ninguém ainda fez uma boa imagem de um objeto voador não identificado. Uma foto clara e incontestável. 

OVNIs e abduções são um dos temas abordados em Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas, do psicólogo e historiador da ciência norte-americano Michael Shermer. Na obra, o autor conta como começou escrevendo para uma revista sobre ciclismo, tornou-se praticante do esporte e passou a seguir várias receitas "infalíveis" para melhorar a competitividade como atleta.

Logo Shermer se deu conta da superficialidade das soluções milagrosas e abraçou a convicção de que apenas o questionamento e experimentação praticados pelo método científico merecem credibilidade. Segundo ele, muitas crenças atraem estudantes de escolas não reconhecidas para fundamentar suas teorias a partir de ideias que não têm amparo em estudos.

Shermer tornou-se um ardoroso defensor da ciência e do ceticismo. Fundou a Skepcit Magazine e a associação do mesmo nome, que promove encontros e palestras. Pesquisador e professor universitário, Shermer ainda participa de debates em programas sensacionalistas de TV. Nessas situações, acaba se expondo a toda sorte de teorias bizarras, algumas delas assunto de Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas.

A obra dedica um bom espaço para a discussão de temas como a tentativa de impor o ensino do criacionismo em escolas nos EUA, ou proibir professores de falar sobre a Teoria da Evolução de Darwin para seus alunos. O debate é antigo, chegou aos livros, filmes e à Justiça, e continua aceso. Outro tema que recebe muita atenção é a sugestão de grupos organizados de que o Holocausto não ocorreu nas proporções amplamente documentadas.

Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas explora poucos temas associados à questão levantada pelo título, mas responde a pergunta. E demonstra como questionar episódios fantásticos ou sobrenaturais. Quem quiser avançar nesse questionamento, pode partir para obras como O mundo assombrado pelos demônios, de Carl Sagan. 

domingo, 14 de junho de 2015

Amizade e amor à natureza

Um clássico sobre amizade e amor à natureza
Mary Lennox é uma menina de dez anos de idade mimada e arrogante, criada na Índia, um ambiente físico e cultural muito distinto da origem de seus pais ingleses. Quando eles morrem, ela é enviada de volta para o interior da Inglaterra, onde começa uma história de amizade, fantasia e amor à natureza.

A aridez e a solidão da vida no Oriente vão sendo gradativamente substituídas por amigos que Mary nunca havia tido, plantas e jardins. Um deles é secreto, fechado e esquecido há dez anos. O mistério intriga a menina, que ganha a ajuda de um tordo. O passarinho passa a acompanhá-la e dar dicas. Mary ainda conhece Dickon, irmão de Martha, empregada da mansão do tio. O menino, dois anos mais velho, tem a amizade de animais silvestres, como um corvo, uma raposa e dois esquilos. 

Escrito pela inglesa Frances Hodgson Burnett e lançado em 1911, O jardim secreto é considerado o primeiro livro a trazer crianças como protagonistas. A história tornou-se um clássico, e foi adaptada para o cinema em 1993. Jardim secreto voltou à lista dos mais vendidos nas últimas semanas, mas esse é o título de um livro com ilustrações em preto e branco para ser pintado com lápis de cor.

Por mais que os livros para colorir para adultos tenham se tornado uma febre, porém, eles não superam a magia de O jardim secreto. Nem o fato de não haver um real vilão, todos serem muito generosos e o desfecho se anunciar absolutamente previsível. O título é classificado como um livro infantojuvenil, mas não há mal nenhum em, de vez em quando, ler um texto que exalte a inocência e a amizade.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Fantasmas reais

A autora inspirou de Neil Gaiman a Stephen King

Shirley Jackson tornou-se conhecida por conta de sua novela The haunting of hill house, traduzida como Assombração da casa da colina. Publicada em 1959, foi adaptada para o cinema em 1963 e 1999. Narra a história de pessoas reunidas em uma casa com reputação sobrenatural por um pesquisar que quer investigar fenômenos aparentemente inexplicáveis, até que cosias começam a acontecer. Um roteiro explorado muitas vezes, em outros livros e filmes.

The lottery reúne 25 contos, incluindo o que dá título à antologia. São histórias sem fantasmas, monstros ou eventos sobrenaturais. Talvez por isso, mais assustadoras. O mal não vem de fora, está no próprio ser humano, capaz de atitudes cruéis. Não há violência física entre os personagens, mas opressão psicológica por vezes apenas sugerida, mas que cria uma atmosfera de opressão.

Uma curiosidade é que todos os contos giram em torno de mulheres. Solidão, abandono, dúvida, preconceito e machismo se revezam ao redor das protagonistas. Em um diálogo, a jovem grávida recém-casada argumenta: “Penso que um casamento bem-sucedido é responsabilidade da mulher.”

Em algum momento, as tramas são quase repetitivas, fazendo de Nova York um cenário que pode ser fascinante, mas também opressivo. Um dos contos, porém, até agora foi a melhor descrição de um ataque de síndrome do pânico que já li. A autora cria uma forte empatia com a personagem, mas você não pode fazer nada por ela.

Shirley Jackson morreu cedo, aos 48 anos, em 1965. The lottery, o conto mais perturbador dessa antologia, foi publicado originalmente na revista The New Yorker, em 1948. Causou uma repercussão enorme no público, o que levou a autora a publicar uma resposta, um mês depois:

“Explicar exatamente o que eu esperava com a história é muito difícil. Imagino que, definindo um rito antigo particularmente brutal no presente e em meu próprio vilarejo, chocaria os leitores com uma dramatização gráfica da violência sem sentido e desumanidade geral em suas próprias vidas.”

domingo, 31 de maio de 2015

Matar um rouxinol

Lançado em 1960, o livro ganha uma sequência este ano

Semanas antes de completar 89 anos (foi em 28 de abril), a escritora norte-americana Harper Lee reapareceu na mídia anunciando que a sequência de O sol é para todos, escrita há 60 anos, chegaria finalmente às livrarias ainda em 2015. Bastou para que uma nova onda de interesse promovesse sua obra lançada em 1960, premiada com o Pulitzer no ano seguinte e com o Oscar de melhor roteiro adaptado em 1962, ao ser levada para o cinema.

Em meados dos anos 1930, na pequena cidade fictícia de Maycomb, Alabama, sul dos Estados Unidos, Scout, uma garota de oito anos de idade, vive com seu irmão Jem e o pai viúvo, o advogado Atticus Finch, sob a tutela de Calpúrnia, uma empregada negra. A memória da Guerra da Secessão ainda é presente e o preconceito racial, muito forte.

Scout (na verdade, Jean Louise) narra sua visão do mundo, da pobreza, da velhice e da questão racial pelo olhos de uma criança. O sol é para todos começa leve, divertido, mas vai surgindo a impressão, a princípio sutil, de que a harmonia entre os habitantes não é boa.

Com a evolução da trama, questões como fazer justiça, dignidade humana e honra profissional se impõem aos irmãos. Muito da inocência vai ficando para trás, mas eles ainda são crianças, e o alívio cômico das travessuras faz um contraponto com os momentos de maior dramaticidade. O texto de Lee Harper faz sentir saudades da infância.

Após mais de meio século, O sol é para todos continua sendo uma obra incrivelmente atual. Especialmente no momento em que a questão racial volta à pauta nos Estados Unidos, a Europa se vê às voltas com o problema da imigração, a intolerância religiosa se converte em violência no mundo e temas como a criminalidade e a maioridade penal são discutidos no Brasil, abrindo espaço para propostas grotescas e medievais.

Ainda sem título em português, Go set a watchman foi oferecido pela autora às editoras antes até de To kill a mockinbird, nome original de O sol é para todos. A obra narra a vida pessoal de profissional de Scout cerca de 20 anos após os eventos que marcaram sua infância em Maycomb.

A versão em português do novo livro deve chegar ao Brasil no segundo semestre.