domingo, 14 de outubro de 2018

Conan Doyle perdido no vale do terror

Sherlock Holmes é o caso típico do personagem que ficou maior do que seu criador

Como outras obras de Conan Doyle, O vale do terror foi publicado primeiro em folhetim na Strand Magazine, entre setembro de 1914 e maio de 1915. O lançamento em livro foi em fevereiro de 1915. É um dos últimos trabalhos envolvendo Sherlock Holmes e seu amigo doutor Watson. E uma das narrativas menos interessantes do famoso detetive.

Conan Doyle usa o mesmo recurso de Um estudo em vermelho, sua primeira obra, lançada em livro em 1888. A trama é dividida em duas partes. Na primeira, Sherlock Holmes desvenda o mistério que envolve um assassinato na Inglaterra. Na segunda, a narrativa migra para os Estados Unidos, onde os bastidores que levaram ao crime são esclarecidos.

Se em Um estudo em vermelho Conan Doyle usa a vida dos mórmons dos Estados Unidos como pano de fundo, em O vale do terror o foco são os maçons. Em sua obra, o autor recorre mais de uma vez a sociedades secretas a fim de construir suas tramas. Esse fato, além da repetição de enredos e técnicas de dedução de Holmes, vão levando as histórias a perder em vigor e originalidade.

As situações e o comportamento de personagens em O vale do terror são caricatos. Conan Doyle parece não se ter esforçado muito para construir essa narrativa. Sabemos que ele já não nutria grande motivação por Homes, desde que havia tentado matar o personagem, 21 anos antes. 

A leitura pode ser interessante para quem ainda não leu nenhuma aventura de Sherlock Holmes. Caso contrário, é indicada para os muito fãs do detetive.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Proust egoísta e manipulador

Obra revela a estranha maneira do autor se relacionar com as mulheres

Marcel Proust não poderia ter escolhido um título mais honesto para o quinto volume de seu Em busca do tempo perdido. Ao decidir levar sua paixão de férias Albertine para sua casa em Paris, o autor faz da moça uma cativa de luxo, sujeita a seus caprichos e devaneios.

Este texto contém informações sobre o desenrolar da narrativa que podem comprometer o prazer pela leitura desse livro. Por essa razão, se você prefere ser totalmente surpreendido antes de ler meus comentários, melhor voltar para cá depois.

A prisioneira nos traz um Proust egoísta e manipulador. Albertine, com quem cogita casar, é mantida em um quarto de sua casa, algo que não agrada sua mãe, que está ausente. A relação entre os dois é asfixiante, pois a moça só pode sair sob supervisão e aprovação de Marcel.

A questão do homossexualismo, muito presente no título anterior, Sodoma e Gomorra, é retomada e aprofundada neste livro. Envolve as angústias que o autor alimenta em relação a Albertine, e também um dos personagens recorrentes de Em busca do tempo perdido, o senhor de Charlus.

O barão acaba vítima de uma intriga que beira o grotesco. Em paralelo a uma apresentação musical encantadora de um septeto, o narrador relata uma conspiração cujo objetivo é humilhar e isolar o nobre. Esse, por sua vez, não se preocupa ao promover uma enorme desfeita à dona da casa, senhora respeitável na sociedade.

O desfecho é melancólico, um episódio - mais um na obra de Proust - que retrata o pior da aristocracia francesa. Há outros, como o desafio de desvirginar e depois abandonar moças ingênuas ou viver de favores.

O texto poético de Proust, porém, não falta às páginas de A prisioneira. O autor retoma suas memórias sensoriais, como a cena emblemática da madalena molhada no chá. As associações auditivas também estão sempre presentes nas reflexões, e a narrativa baseia-se muito na obra do compositor Vinteuil.

Há um momento delicioso no livro quando, deitado em sua cama, Proust fala das pessoas que passam pela ruas apregoando frutos do mar, vegetais frescos e produtos da estação, como se Paris tivesse sua própria música. Ao menos no bairro aristocrata habitado pela família do autor, onde o mercado vai até os moradores.

Embora compartilhe esses momentos poéticos, Albertine é mantida "presa" por ciúme. Proust deseja muito conhecer Veneza, e entende que a moça é um empecilho. Egoísta e manipulador, o autor se dá conta de nem sequer gostar mais dela, mas sofre com a suspeita de que a moça tenha tido amantes - homens e mulheres - no passado. E não tolera a ideia de uma traição, ou de vê-la com outras pessoas mesmo após uma separação.

Albertine é mantida sob vigilância, em um clima de paranóia que se torna ainda pior quando o autor acaba por ter certeza de que a moça mente a fim de se encontrar com outras pessoas. O episódio resulta em uma discussão nterço final do livro, em que Proust entra em conflito também consigo mesmo, sobre a conveniência de terminar o relacionamento, e quando tomar essa atitude. Deixa muito claro que quer isso, mas a decisão tem de ser sua.

Já na etapa de separação, nas páginas finais de A prisioneira, durante passeio com Albertine por Versailles, os dois ouvem um avião. O autor faz então considerações sobre o som que ouve com relação ao apito de um trem a dois quilômetros de distância. Curioso que, ao longo dos anos registrados por Proust em sua obra, vão surgindo o telefone, o automóvel e o avião, e o autor não deixa de falar algo sobre isso.

Deixo o desfecho de A prisioneira por conta de sua leitura. É um livro que desperta irritação por conta das atitudes do autor. Mas é um retrato fiel da alma humana, pintado com o talento de Marcel Proust.

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

A promessa

Volume traz uma novela e um conto do autor

É muito legal ser surpreendido por uma obra ou autor do qual nunca se ouviu falar. É o caso dos títulos de agosto do serviço de assinatura Tag Livros. Títulos porque a novela A Promessa e o conto A Pane foram reunidos em um só volume. 

As obras foram escritas por Friedrich Dürrenmatt, autor suíço que viveu de 1921 a 1990. Dürrenmatt é mais conhecido no Brasil como dramaturgo, autor de A visita da velha senhora, de 1956. A peça foi encenada no Brasil em várias montagens, a última delas com Denise Fraga. Foi também um dos últimos trabalhos de Tônia Carrero.

No mesmo ano de A visita da velha senhora, o autor escreveu A Pane, e em 1958, A PromessaDürrenmatt questiona a ideia do detetive infalível e certeiro em suas conclusões lógicas. debate a literatura policial dentro da trama de uma história que tem todos os elementos de um romance do gênero, fazendo metaliteratura.


Faz isso em A Promessa por meio de um escritor de romances policiais cujo nome não ficamos sabendo. O personagem narra em primeira pessoa seu encontro com um policial crítico de como sua atividade é retratada pela ficção.

A Promessa gira em torno da história do investigador Matthäi, que promete à mãe de uma menina assassinada punir o responsável pelo crime. Mesmo quando um suspeito é identificado, o velho policial segue com sua investigação obsessiva. 

É um romance de rápida leitura, não convencional para quem está habituado aos policiais mais conhecidos. Causa estranheza, por exemplo, o agressivo diálogo de adultos com uma criança, lembrando que a obra foi escrita há seis décadas. 

Questões como a justiça popular, violência policial e a própria infalibilidade da justiça estão presentes. E o autor inova ao tocar no tema do assassino serial, 60 anos atrás.


Dürrenmatt tem um texto seco, direto, enxuto. E uma ironia amarga. É a essência de A Pane, onde o autor volta a brincar com a soluções fáceis para os textos de ficção. Quando o vendedor Alfredo Traps vê-se retido em um vilarejo por conta de um defeito no carro, hospeda-se em uma grande casa. Lá é convidado para participar de um jantar muito singular, que vai simular um julgamento. O réu? Ele mesmo.

A sequência lembra o banquete de A festa de Babette, conto de Karen Blixen que virou filme premiado com o Oscar. O desfecho, bem, o desfecho não decepcionaria Edgar Allan Poe.






sábado, 6 de outubro de 2018

Uma boa história de bruxas


Edição caprichada traz textos e ilustrações extras revelando o processo criativo dos artistas 

Uma carcaça de automóvel abandonada no meio de um bosque e dois garotos com muita imaginação criativa. Já adulto, um dos meninos - autodeclarado "ansioso" - usa o talento como escritor para traduzir as fantasias juvenis e suas dúvidas com relação à educação dos filhos em uma história original explorando o mito das bruxas.

Wytches é uma boa história de horror escrita por Scott Snyder. Os elementos sombrios, como um trauma do passado, a floresta escura e a família que escolhe viver em um casarão isolado estão presentes. E a narrativa fragmentada contribui para o clima de incerteza que vai envolvendo personagens e o próprio leitor.

Não é por acaso que os quatro artistas envolvidos nessa graphic novel têm crédito na capa. Os traços de Jock, as cores de Matt Hollingsworth e as letras de Clem Robins combinam com perfeição para transmitir o clima de angústia imaginado por Snyder.

A bela edição encadernada, em formato especial da Darkside, traz seis textos complementares assinados pelo autor do argumento. Snyder fala de experiências próprias, temores pessoais e como eles influenciaram a concepção da história e seus personagens. Com fotos do local de sua pré-adolescência que inspiraram a graphic novel.

As páginas finais trazem ainda algumas sequências que ilustram o processo criativo, desde os esboços às técnicas finais de coloração.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Histórias reais de horror

O livro é resultado de uma pesquisa de sete anos do autor

Caco Barcellos hoje é mais conhecido por seu trabalho à frente de Profissão Repórter, da TV Globo, mas sua carreira vem de longe. E um dos trabalhos de destaque é Rota 66 - A história da polícia que mata, livro-reportagem lançado em 1992.

É um obra mais do que atual, no momento em que a questão da segurança pública - ou a falta dela - está em pauta. O tema chamou a atenção de Barcellos desde a infância, ainda no Rio Grande do Sul, por conta de excessos da polícia. O autor destaca que a grande maioria dos policiais militares só recorre à violência extrema - o uso de armas de fogo - quando não há alternativa. 

Já vivendo em São Paulo, porém, em começo de carreira como jornalista, percebe um padrão de violência. O suspeito resiste à abordagem, reage a tiros, é baleado e levado pela viatura ao hospital, onde é declarado morto.

Esse relato se repete muitas vezes em jornais que dão grande espaço ao noticiário policial, como o extinto Notícias Populares. Barcellos nota também a repetição de alguns nomes de policiais envolvidos nos tiroteios. Todos da Rota.

Ficamos sabendo da origem da Polícia Militar paulista em 9 de abril de 1970, a partir da fusão da antiga Força Pública com a Polícia Civil. E que parte dos integrantes da Rota, recém-criado criado grupo de elite da PM, teve origem em organizações como a Oban, Operação Bandeirante, que combatia movimentos armados de esquerda e assaltos a banco. 

Muito antes de ser moda falar em jornalismo de dados, Caco Barcellos cria o seu Banco de Dados, e parte para um trabalho extraordinário. Ao longo de sete anos, pesquisa 22 anos de atividade da Polícia de São Paulo, entre 1970 e 1992. 

À revelia da má vontade das autoridades que dificultam seu acesso a documentos públicos, promove uma longa pesquisa, vasculhando arquivos desorganizados, em salas empoeiradas e até insalubres. Confronta os dados com os recortes de Notícias Populares e documentos da Polícia Civil e do Instituto Médico Legal.

Após a análise atenta de quase quatro mil casos, constata que ao menos dois terços dos mortos não tinham qualquer passagem pela polícia. Em muitos casos eram trabalhadores inocentes de qualquer acusação. Em geral, pessoas pobres da periferia, de pele parda ou negra, cujo maior pecado era estar no lugar errado na hora errada.

Caco Barcellos dá um rosto e uma história a casos que normalmente são apenas relatos frios nas páginas de jornais. Alguns episódios se destacam, como o do filho de um sargento da própria PM, morto após uma perseguição de carro. Ou o de Fernando Ramos da Silva. Jovem de origem humilde, ele foi escolhido pelo cineasta Hector Babenco para viver o papel principal em Pixote, a lei do mais fraco, filme de 1981. Não conseguiu se firmar na carreira de ator e, seis anos mais tarde, acabou morto pela polícia aos 19 anos de idade.

Em uma madrugada de abril de 1975, um grupo de jovens de classe média alta é flagrado por uma equipe da Rota furtando o toca-fitas do carro de um amigo. Segue-se uma perseguição policial por ruas de bairros nobres de São Paulo, descrita em detalhes por Caco Barcellos como se ele estivesse presente. Várias viaturas são envolvidas, até o cerco final do Fusca ocupado pelos rapazes e sua morte por rajadas de metralhadora.

É o episódio que dá título a esse livro. É uma das histórias de horror mais fortes que já li, porque a brutalidade é real, e os monstros existem. Um corajoso livro-reportagem que merece sua leitura.