domingo, 19 de março de 2017

O marciano


O título em português é inadequado, mas o livro é ótimo

Talvez você se canse de ler sobre cálculos, raciocínios complexos e batatas. Mas, não duvide, Mark Watney ficou muito mais enjoado. É do tubérculo - entre outras coisas essenciais à vida, como água e ar - que depende a sobrevivência do astronauta-botânico deixado no planeta vermelho. A condição não planejada faz dele "O marciano", título original substituído em português por "Perdido em Marte". 

E perdido é o que Mark não chega bem a ficar. Deixado para trás, abandonado, até pode ser. Mas, apesar de ferido, ele se vira muito bem com seus conhecimentos científicos, espírito de improvisação e vontade de viver, contrariando os piores prognósticos.

Leitor voraz e admirador de ficção e divulgação científica, o ex-programador Andy Weir batalhou muito a fim de conseguir uma editora para seu primeiro romance, divulgado inicialmente como um seriado em seu site. História comum: foi recusado por várias editoras, até decidir publicar "The martian" como livro eletrônico, oferecido por 99 centavos de dólar. A menos que você tenha vivido os últimos anos em Marte, sabe que a trama acabou chegando aos cinemas.

Andy Weir foi cuidadoso para tornar o mais cientificamente verossímil seu trabalho. É verdade que, em muitas situações, Mark Watney lembra o personagem Macgyver do seriado de TV, aquele que conseguia escapar das situações impossíveis com recursos improváveis. Mas o fato é que, apesar de algumas concessões, o romance não abusa da ciência real.

Mais do que isso, cria muita tensão e aquela deliciosa necessidade para o leitor saber o que ocorrerá a seguir. E há um clima de suspense constante também na nave Hermes, em viagem de retorno à Terra após a missão abruptamente interrompida, e nas agências espaciais sobre o que e como fazer diante da inédita situação de uma pessoa que se acreditava morta sozinha em Marte.

Tanto no livro como na adaptação boa e fiel dirigida por Ridley Scott para o cinema, "Perdido em Marte" homenageia a ciência, estimula a curiosidade e mantém a atenção até o fim. Mas, no fim do livro, Mark diz que, caso um montanhista se perca na montanha, as pessoas se organizam para resgatá-lo. Em termos: em situações extremas, em que a vida de outras pessoas pode ser sacrificada, pode-se decidir friamente não fazer o socorro. Caso Mark fosse um alpinista no Everest, é provável que ele não tivesse chance.

quarta-feira, 1 de março de 2017

Aula magna de cidadania


Livro vai muito além de uma simples história de amor

Imaginava ter a mínima noção sobre a chamada "questão racial", e, ao fim da leitura de "Americanah", a conclusão foi que - sim - minha noção  era mínima. Do alto de suas tranças elaboradas, Chimamanda Ngozi Adichie dá uma aula sobre o tema, falando sobre cultura, culinária, música, política, trabalho, relacionamentos e... cabelos!

A jovem estudante Ifemelu parte de uma Nigéria envolta em tramoias políticas e corrupção para encarar uma bolsa de estudos nos Estados Unidos. Mas deve trabalhar e ganhar dinheiro para custear sua permanência, um desafio que se torna ainda maior por ela não querer abrir mão de suas convicções e raízes culturais. E por rapidamente perceber que, em questões básicas de cidadania, o negro africano é "diferente" do afro-americano, que por sua vez não é igual aos latinos e seus descendentes que convivem nos Estados Unidos.

"Americanah" retrata o período que antecede a primeira eleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. A sensação de quase incredulidade dos estrangeiros que, como Ifemelu, acompanham as etapas finais de sua chegada à Casa Branca. A vivência de Chimamanda resultou uma obra tocante e esclarecedora até para quem se dá por informado e bem intencionado.

Como estarão se sentido e o que vão escrever as "Ifemelus" vivendo hoje sob a era Trump?