sábado, 28 de março de 2015

A verdade no fundo da caverna

A obra é um misto de livro ilustrado e graphic novel
Um pai à procura da filha desaparecida há mais de dez anos, um ladrão e um tesouro oculto numa caverna misteriosa. Esses são os elementos quase simples que Neil Gaiman - autor inglês de romances e quadrinhos mais conhecido por Sandman - usou para compor A verdade é uma caverna nas montanhas negras. O conto, publicado em 2010 na antologia Stories, ganhou edição própria ilustrada por Eddie Campbell, artista consagrado por seu trabalho em From Hell, de Alan Moore.

A história se passa nas Black Cuillins, Ilha de Syke, paisagem que o escocês Campbell conhece muito bem e fascinou Gaiman. A obra é um misto de graphic novel e livro ilustrado, em que texto e imagens conversam muito bem para criar o clima sombrio da narrativa. 

O pai é um anão que contrata um ladrão como guia até a caverna onde espera encontrar a verdade sobre o desaparecimento da filha. Por não encontrar equivalente em português, Augusto Calil, tradutor do texto, optou por manter a expressão border reaver em inglês para o personagem que, há séculos, assaltava indistintamente ingleses e escoceses nas fronteiras entre os dois países. 

A viagem é úmida, sombria e perigosa. A relação entre os dois homens é tensa e desconfiada: um não está certo das respostas que vai encontrar, outro pensa no ouro guardado na caverna. Aqui Gaiman se apropria do modelo de jornada por territórios pouco conhecidos, envoltos em névoas e nuvens, reunindo uma dupla improvável de um anão cheio de segredos e um ladrão movido pela ambição.

O desfecho me lembrou o enredo das pulp fictions dos anos 1940 e 1950, reproduzidas em revistas como Weird Tales e Cripta, no Brasil. Mas a narrativa é boa, tanto o texto de Gaiman quanto o visual das ilustrações de Campbell. Vale a leitura.

Valeria mais ainda assistir a performance de Gaiman. Ele tem feito leituras do conto em teatros com projeção das ilustrações de Campbell (as do livro e outras inéditas), ao som do quarteto de cordas australiano FourPlay, que conta em seu repertório com o tema do seriado Doctor Who. Gaiman é um excelente narrador, como pude conferir em sua leitura de O oceano no fim do caminho.

A verdade é uma caverna nas montanhas negras foi lançado no Brasil pela Intrínseca em uma bem cuidada edição de 80 páginas com capa dura. Custa R$ 34,90 na versão impressa e R$ 19,90 na eletrônica.

sábado, 21 de março de 2015

Big Sur, a angústia de Jack Kerouac

Edição da Penguin faz referência ao filme que não chegou ao Brasil

Jack Kerouac teve de esperar sete anos até que sua maior obra, On the road, fosse publicada, o que foi feito em 1957. Apenas três anos depois, o “rei dos beatniks” não era um autor realizado com o sucesso de seu livro, mas um homem de menos de 40 anos com a saúde destruída pelo alcoolismo e espírito atormentado. Foi nessa condição que aceitou o convite do amigo e poeta beat Lawrence Ferlinghetti para um período de descanso e retiro em sua cabana em Big Sur, área de beleza selvagem na costa da Califórnia, ao sul de São Francisco.

Da experiência resultou o livro considerado mais intimista de Kerouac, Big Sur. Escrito com o estilo que o autor chamava de prosa espontânea, que lembra a técnica do fluxo de consciência, narrativa e reflexões fluem sem muita elaboração, em meio a onomatopéias e pontuação caótica.

Big Sur é também um relato amargo e triste. Jack Duluoz (alter ego de Kerouac) passa pela cabana de Ferlinghetti (Lorenzo Monsanto no livro) em três ocasiões. A primeira, quando fica sozinho, resulta no terço da obra em que a força da natureza e a paisagem impressionante da região são marcantes.

De volta a São Francisco, Duluoz/Kerouac recebe uma notícia que o deixa arrasado. O trecho em que fala sobre a dor de sua perda é lancinante. Reencontra seu grande parceiro de estrada, Neal Cassady, que havia sido Dean Moriarty em On the road e é apresentado como Cody Pomeray em Big Sur. Ressurgem também outros amigos, velhos e novos amores: Carolyn Cassady (como Evelyn), Gary Snyder (Jarry Wagner), Philip Whalen (Ben Fagan), Michael McClure (Pat McLear), Lenore Kandel (Romana Swartz) e Robert La Vigne (Robert Browning).

Vários momentos “On the road” se sucedem, e a paixão pela liberdade de um carro na estrada é celebrada com manobras arrojadas e muita velocidade. E o atormentado autor bebe muito, bebidas de baixa qualidade em grandes quantidades. E antigas paixões são reacesas, e há sexo, e um porre contínuo. A decadência física de Duluoz/Kerouac é angustiante, com crises de delirium tremens e paranóia.

A LP&M oferece edição impressa e eletrônica

Por que ler um livro assim? Porque Kerouac é visceral, sua prosa é ágil, Big Sur é um lugar fascinante e Ferlinghetti foi um dos fundadores da livraria e editora City Lights Books, em São Francisco, responsável pelo impulso editorial da Geração Beat. O autor está se consumindo, mas escreve um livro emocionante e vertiginoso.

Big Sur foi lançado em 1962, e tem edição no Brasil pela L&PM, com tradução de Guilherme da Silva Braga e prefácio de Aram Saroyan. O livro é oferecido na edição impressa, com 192 páginas (R$ 17,90), e ebook (R$ 12,00).

A obra ganhou uma versão para o cinema em 2013. O filme foi recebido com alguma indiferença nos EUA, e não foi lançado no Brasil sequer em DVD. Mate a vontade com o trailer:



quarta-feira, 18 de março de 2015

Você casaria com um morto?

A noiva é jovem, bonita; o noivo, rico, e morto
Se casamentos arranjados já são uma ideia estranha hoje, pior ainda seria casar com um noivo morto. Mais do que conceber essa possibilidade, Yangsze Choo escreveu sobre ela. E com propriedade: a autora é a quarta geração de uma família que tem suas origens na China e na Malásia, onde um dia foi comum “aceitar” o macabro casamento a fim de apaziguar o espírito do falecido.

Romance de estreia de Choo, A Noiva Fantasma (The ghost bride) foi lançado há um ano e meio nos EUA, onde vive a autora, e bem recebido por leitores e críticos. Não é só mais um chick lit, asseguram alguns comentários. A história da jovem Li Lan se passa em 1893, ano em que ela tem de submeter ao casamento para ajudar a família em decadência financeira. A trama envolve mitologia, suspense criminal e toques sobrenaturais.

A Noiva Fantasma será lançado pela DarkSide em abril, com tradução de Leandro Durazzo. Terá 360 páginas e capa dura.

domingo, 15 de março de 2015

Como Anne Hathaway leu O mágico de Oz para mim

São 3 horas e 52 minutos de diversão
Eu ainda não havia lido O mágico de Oz quando a Audible lançou o título com locução de Anne Hathaway. Ótima oportunidade para preencher uma lacuna em minhas leituras, saber como ficaria a obra interpretada pela atriz e, claro, forçar uma melhora na compreensão do inglês. O resultado foi ótimo.

O primeiro audiolivro que ouvi foi lançado nos idos dos anos 1980 pela Audiocultural: Os melhores contos de Stephen King do livro Sombras da noite trazia em fitas cassete O fantasma, O homem do cortador de grama e A máquina de passar roupa dramatizados por 19 locutores em 2 horas. Era divertido de ouvir, mas acabava muito rápido e a a Audiocultural lançou poucos títulos.


A locução, feita pelo próprio autor, faz toda a diferença
Dando um salto no tempo, o segundo título que "li" foi Vale tudo, a biografia de Tim Maia escrita por Nelson Motta. Aqui a experiência já foi de um nível muito superior, e não apenas porque essa versão lançada pela editora Plugme em CD, em 2007, tinha mais de 14 horas de duração: a ótima e emocionante locução é do próprio Nelson Motta, que foi amigo pessoal do cantor e compositor. 

Mais alguns anos, e a digitalização facilitou tudo. Se antes era preciso estar em casa ou no carro para ouvir o CD, arquivos digitais ficaram muito acessíveis e portáteis em mp3. E livros tornaram-se companheiros para mim em muitas outras atividades, como correr ou cuidar do quintal. Não entendeu bem alguma parte? Tudo bem, volte alguns segundos ou minutos e ouça novamente.

Fiz uma assinatura mensal da Audible, que conta com um time enorme de locutores e atores. Descobri Thérèze Raquin, de Émile Zola, na voz de Kate Winslet, e ouvi/li O mágico de Oz com Anne Hathaway. Se a experiência de ouvir uma obra com os profissionais de narração já é muito boa, entreter-se com a interpretação de vozes e entonações de uma atriz vale cada minuto. No vídeo, uma canja da performance de Anne Hathaway.



Parece que aquelas fitas cassete com os três contos de Stephen King tornaram-se uma raridade. As minhas eu dei para o Caio Peroni, sobrinho-fã do autor. A propósito, quando liguei para ele a fim de revisar as informações sobre aquela publicação, ele me lembrou uma extra. Em Rose Madder, obra de Stephen King em que uma mulher foge do marido agressor, a personagem começa a reestruturar sua vida abraçando a profissão de... locutora de audiolivros.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Fantástico circo mecânico

A capa é intrigante. A hisória também
Desconcertante é um adjetivo que traduz bem O circo mágico Tresaulti, romance de estreia da norte-americana Genevieve Valentine. A jovem escritora norte-americana (completa 34 anos em primeiro de julho) investe no tema steampunk em um universo pós-apocalíptico em que pessoas e mecanismos vivem uma relação, digamos, metálica e carnal.

A trama se desenvolve de maneira fragmentada, onde a magia do circo, a relação entre os artistas e Boss, sua chefe, salvadora e protetora, o público e a sugestão de uma misteriosa ameaça estão sempre envoltos em um clima fantástico. Os limites entre máquina e corpo podem se confundir e nem ser muito claros para o leitor, mas isso acaba não sendo importante. O humano é o que ainda move os personagens: ciúme, inveja, ansiedade, paixão e medo. Muito medo.

Como toda atração mambembe, o circo está sempre em movimento por estradas e cidades de um território não identificado, sob uma atmosfera opressiva. Mas em busca de novos públicos ou à fuga da ameaça invisível? A dúvida e a tensão se mantêm ao longo da narrativa até o desfecho que pode até não surpreender, mas é melhor que você não chegue nesse trecho se precisa acordar cedo no dia seguinte. O final é garantia de só largar o livro na última página.

O circo mágico Tresaulti foi lançado no Brasil em 2013 pela Dark Side Books, com a mesma capa da edição original dos EUA, e que atraiu minha atenção na livraria. Os leitores brasileiros da tradução feita por Dalton Caldas, no entanto, tiveram como bônus as belas ilustrações do quadrinista e animador Wesley Rodrigues.

Mitologia de duas culturas em uma embalagem atraente
A editora anuncia para abril mais um romance fantástico de outra norte-americana. Golem e o Gênio, de Helene Wecker, é uma fantasia histórica na Nova York da virada do século XX, envolvendo seres mitológicos das culturas árabe e judaica. A criatura feita de barro e o gênio liberado de uma antiga garrafa de cobre dão título ao livro de capa dura com 460 páginas.

Golem e o Gênio tem recebido elogios no exterior. Vale conferir se a trama e o textos serão tão atraentes em português quanto a capa. O desafio da tradução ficou para Cláudia Guimarães.

domingo, 8 de março de 2015

Duendes, poesia e o fim da Guerra Fria

Um ovo de duende no aeroporto de Reykjavik

Dizer que a Islândia é um lugar fascinante é pouco. País a meio caminho entre a Europa e a América do Norte, em pleno círculo polar Ártico, a ilha vulcânica tem menos habitantes do que alguns bairros de cidades brasileiras, mas abriga o "povo invisível": elfos, gnomos, trolls e outros seres místicos.

É também o país das grandes sagas, longos relatos de heróis
islandeses que as crianças já conhecem na escola, histórias que transmitem valores morais e nacionalistas. E foi também o lugar escolhido para um encontro histórico entre o premier soviético Mikhail Gorbachev e o presidente dos EUA, Ronald Reagan. Nos dias 11 e 12 de outubro de 1986, os dois se reuniram para iniciar as negociações para o fim da Guerra Fria.


O encontro foi na casa da foto acima, na capital do país, que leva o poético nome de "baía das águas brumosas", Reykjavik. Einar Benediktsson viveu nessa casa até morrer, em 1940. Além de trabalhar como advogado, ele fundou o primeiro jornal da Islândia, militou pela independência de seu país e pela proteção de seus recursos naturais.

E ainda arrumou tempo para escrever poesias. Agora olhe um pouco mais de perto, na foto a seguir. No singelo banco diante de sua antiga casa, um código de barras permite que, com um celular equipado com escâner, qualquer pessoa ouça a leitura dos poemas de Benediktsson. Bacana que o lugar onde a humanidade afastou-se um pouco mais do risco de uma guerra nuclear tenha preservado espaço para a sensibilidade de um poeta.




quarta-feira, 4 de março de 2015

Uma história da leitura, história de uma paixão

É muito bom, mas se pegar emprestado, devolva

Como você prefere ler? Em um ambiente silencioso? Séculos antes da invenção da prensa móvel, livros eram muito raros e caros, e a maior parte da população do planeta era analfabeta. Mas quem lia, mil anos atrás, lia em voz alta. Pois então imagine o vozerio em um lugar como a Biblioteca de Alexandria. Milhares de papiros, pergaminhos, gente culta circulando. E lendo em voz alta!

Esse é apenas um dos momentos saborosos de Uma história da leitura, livro do argentino Alberto Manguel, lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Resultado de um trabalho de sete anos, a obra relata a evolução física do livro, retrata a formação dos leitores ao longo da história, a relação das pessoas com o objeto, hábitos de leitura e a reação de governantes, empresários e instituições como a Igreja Católica.

A leitura das histórias de Alberto Manguel fez eu me sentir uma pessoa "normal". O autor, por exemplo, fala de seus critérios para organizar os livros na estante. É um leitor como nós. E fala de outros leitores, mais e menos conhecidos: "... devemos ler somente livros que nos mordam e piquem. Se o livro que estamos lendo não nos sacode e acorda como um golpe no crânio, por que nos damos o trabalho de lê-lo?", escreveu Franz Kafka em uma carta para um amigo.

Uma história da leitura tem 408 páginas e é ilustrado com fotos e reproduções de gravuras que documentam a história dos livros, de leitores e do hábito de leitura. Infelizmente, está esgotado. Mas vale investir em um exemplar usado ou mesmo de biblioteca. Mas, se pegar emprestado, devolva. Lembre-se da advertência na biblioteca do mosteiro de São Pedro, em Barcelona, transcrita em Uma história da leitura:

"Para aquele que rouba ou toma emprestado e não devolve um livro de seu dono, que o livro se transforme em serpente em suas mãos e o envenene. Que seja atingido por paralisia e todos os seus membros murchem. Que  definhe de dor, chorando alto por clemência, e que não haja descanso em sua agonia até que mergulhe na desintegração. Que as traças corroam suas entranhas como sinal do Verme que não morreu. E quando finalmente for ao julgamento final, que as chamas do inferno o consumam para sempre."

Algum monge ficou muito irado com a perda de um livro não devolvido...