segunda-feira, 27 de julho de 2015

Funeral de livros



Um livro bem pequeno, mas só no tamanho físico
No terceiro episódio da terceira temporada de Orange is the new black, A caminho da redenção, há referência a vários livros, cujos títulos são lidos diante das cinzas dos volumes queimados em uma ação contra a infestação de percevejos na prisão. Livros são, aliás, mencionados em vários episódios da série. Mas o fim da biblioteca por conta da praga dos insetos motiva o "funeral" em homenagem às obras sacrificadas.

Queima de livros por nazistas, pela Igreja ou seja lá quem for é sempre um episódio a se lamentar. Mas o destino de uma biblioteca de 20 mil títulos raros é o que surpreende em A casa de papel, livro do argentino Carlos María Domínguez. Em apenas 90 páginas, o autor consegue reunir a paixão pelos livros e pela leitura, erudição na medida certa em uma obra destinada ao grande público e doses de mistério e suspense com uma original história de amor.

A casa de papel, da Realejo Livros, tem tradução e posfácio de Joca Reiners Terron e ilustraçães de Helena Campos. Garantia de algumas horas de prazer para quem ama livros.

sábado, 25 de julho de 2015

Como vivem os mortos

A versão em graphic novel conta com vários artistas
Neil Gaiman se apropria de lendas e tradições antigas, tempera com doses de mistério e suspense e ambienta a trama em um cemitério - lugar que normalmente intimida as pessoas. The graveyard book fala de um espaço em que há, sim, medo e criaturas sinistras, mas também tolerância, reconciliação, amor e conhecimento. Resta saber como o autor vai resolver a intrigante situação de Nobody Owens.

Sete artistas alternam-se nas ilustração dessa versão em quadrinhos. Se, por um lado, isso causa certa estranheza na mudança abrupta de traços com que os personagens são retratados, por outro permite conhecer e comparar a obra de diferentes quadrinistas. Não chega a comprometer o sabor da narrativa em que mortos "levam uma vida" quase normal, e até tem seu dia de festa.

The graveyard book foi publicado em português pela editora Rocco como O livro do cemitério, uma edição ilustrada. A versão em quadrinhos teve a sequência lançada em outubro. A graphic novel é disponível apenas em inglês. 

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Oblómov: ser ou não ser?

Ingênuo, preguiçoso, Oblómov põe sua inteligência a serviço do nada

Iliá Ilitch Oblómov nunca vestiu as próprias meias, mesmo após adulto e sendo saudável. Um servo fez isso por ele desde criança, na Rússia do século 19. Junte-se a essa servidão uma preguiça e falta de atitude diante da vida como poucas vezes retratada na literatura, e o resultado é Oblómov, romance de Ivan Gontcharóv publicado em 1859.

O livro saiu apenas dois anos antes do fim da servidão na Rússia Imperial. Por mais de 200 anos, vigorou um sistema em que camponeses "pertenciam" ao dono da terra. O nobre proprietário podia dispor de seus servos nos trabalhos da lavoura e domésticos; podia mesmo vendê-los junto com o latifúndio.

Iliá Ilitch Oblómov é um desses senhores, mas há muito mora em Petesburgo, vivendo da renda da propriedade herdada dos pais. Além de visitas eventuais de amigos - mais interessados em dinheiro e favores do que propriamente amizade -, tem apenas a companhia de Zakhar, fiel mas rabugento servo. A dupla, espécie de Dom Quixote e Sancho Pança, protagoniza sequências hilárias, o alívio cômico da obra. 

Zakhar passa as primeiras 150 páginas do romance de pouco mais de 700 tentando arrancar Oblómov da cama. A atitude de seu patrão muda pouco ao longo da obra (sim, ele sai da cama!), uma crítica de Gontcharóv ao decadente modelo de concentração de riquezas e terras em uma Rússia que precisa se modernizar.

Oblómov tem a sorte de contar com um amigo de infância, Stoltz, que se esforça a arrancá-lo do marasmo. Entre outros "empurrões", o apresenta a Olga, bela e meiga representante da nobreza russa. Descobrir as consequências desse encontro ficam por conta do seu prazer da leitura.

Em muitos momentos, o livro é pesaroso e melancólico como um russo sabe ser, mesclando a paisagem invernal de uma Petesburgo dividida pelo rio Neva congelado a passagens tristes vividas pelos personagens. Melancolia é um traço dessa obra. Em algum momento, cada um dos personagens é acometido pela angústia existencial.

Li Oblómov em uma bela edição da CosacNaify, com tradução direto do russo e texto introdutório de Rubens Figueiredo. O livro é encadernado em capa dura e traz páginas com estampas usadas pela aristocracia russa. Há ainda um posfácio de Renato Poggioli, crítico italiano especializado em literatura russa. 

Ivan Gontcharóv é um autor injustamente menos conhecido da literatura russa. Li Oblómov por indicação de Juliana Wallauer no Qual é a Boa? do Braincast 129, de 9 de outubro de 2014. Ouvi seu comentário e fiquei atraído pela obra. Não me arrependi.

domingo, 19 de julho de 2015

Mistérios do cérebro

O livro relata desconcertantes manifestações da mente humana

Se ser "normal" já é tão difícil, um acidente ou disfunção mental pode tornar tudo muito complicado para o paciente e as pessoas que o cercam. Mas pode ser, também, que o paciente nem sequer tenha consciência de ser "diferente". E, afinal, o que é ser "normal"? Esse é o tema do neurologista inglês Oliver Sacks em O homem que confundiu sua mulher com um chapéu - e outras histórias clínicas. Lançado em 1985, o livro reúne 24 ensaios sobre casos de perda parcial ou total da memória e problemas mentais como o autismo. 

Os casos são desconcertantes, como a da mulher de 27 anos e dois filhos que perdeu a consciência do próprio corpo: se estivesse sentada e fechasse os olhos, caía da cadeira. Só conseguia se mover com segurança se estivesse olhando para os pés ou para as mãos. Não tinha a capacidade de perceber o próprio corpo, sua localização no espaço, a posição de cada parte em relação às outras. Perdera a propriocepção.

Sem ser sensacionalista ou cair na armadilha do pieguismo, Sacks relata as histórias e tratamentos de pacientes que passaram por seu consultório. Como o caso da mulher de 89 anos que passou a viver uma euforia com a vida, e foi diagnosticada com "a doença do cupido", manifestação de sífilis neurológica contraída 60 anos antes. Ela pede para não ser curada, pois está feliz. 

"Investigamos os problemas físicos e mentais de nossos pacientes, não os seus talentos", comenta o autor no caso da moça alienada criada pela avó. Após a morte de sua tutora, quando tudo poderia dar errado, a jovem já em tratamento se revela excelente atriz de teatro.

O neurologista e autor vive nos EUA há muitos anos. Além de grande médico e pesquisador, é excelente escritor; transforma as histórias clínicas não em curiosidades mórbidas, mas em relatos tocantes que, muitas vezes, questionam a própria ciência e instigam a reflexão. De sua vasta obra, li e recomendo muito também Um antropólogo em Marte, de 1995, que reúne mais casos clínicos extraordinários e contribui para demolir preconceitos. Você pode precisar confiar sua vida a um cirurgião, e gostaria que ele fosse um dos melhores, certo? E se soubesse que ele sofre de uma síndrome que o acomete de tiques mentais e físicos?

A obra de Sacks vem inspirando roteiristas e adaptações para o cinema. Tempo de despertar (1990), com Robin Williams e Robert De Niro, foi adaptado de seu livro lançado em 1997 que tem o mesmo título em português.


Oliver Sacks em foto de 2009 © Luigi Novi / Wikimedia Commons
Oliver Sacks, que completou 82 anos de idade em 9 de julho, recebeu no começo deste ano a notícia de que tem apenas alguns meses de vida. Sofre com a metástase de um câncer em estágio avançado no fígado. Em 19 de fevereiro, publicou um artigo de despedida no jornal The New York Times, em que admite sentir medo, mas afirma que seu maior sentimento é de gratidão:

"Sinto-me intensamente vivo, e quero e espero, no tempo que me resta, aprofundar minhas amizades, dizer adeus aos que amo, escrever mais, viajar, se eu tiver forças, alcançar novos níveis de compreensão e entendimento."

Vale conferir a bela homenagem a Oliver Sacks feita por Maria Popova em seu site Brain Pickings.

domingo, 5 de julho de 2015

Jazz literário

Um livro para ser lido com jazz ao fundo
Várias editoras estão empenhadas na sobrevivência do livro físico, de papel. E é bom que seja assim: se a tecnologia e recursos de gráfica abrem espaço para a criatividade, o bom gosto é determinante. E bom gosto não falta à editora Cosac Naify. O perseguidor, de Julio Cortázar, é apenas um exemplo.
Conto-novela do escritor argentino, O perseguidor tem ilustrações de José Munõz, também nascido na Argentina. Seu traço explora as linhas fortes, o preto e branco contrastante, e influenciou artistas do calibre de um Frank Miller em Sin City, por exemplo.
Cortázar era um fã ardoroso do jazz: tocava trompete em casa apenas para seu deleite. E admirava a obra do saxofonista Charlie Parker, no livro retratado como o delirante e adoentado músico Johnny Carter. A vida caótica do músico em Paris, entre drogas, visões, fraqueza física, saxofones perdidos, surtos, mulheres, divagações e momentos de criatividade genial é acompanhada de perto por um jornalista que escreve sua biografia.
Como nas páginas em que se parece ouvir notas musicais em On the road, de Jack Kerouac, O perseguidor é um livro musical, sem que se veja uma mínima ou semínima impressa. 


José Muñoz retrata a cena do jazz em Paris com inspiração