quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Visão obscura do automóvel



O romance foi levado ao cinema por David Cronenberg

Décadas antes de começar a discussão sobre se o automóvel será o "novo cigarro" - algo a ser banido num futuro próximo como nocivo à sociedade - J. G. Ballard escreveu Crash, uma visão que vai além do pessimismo.

O livro lançado em 1973 deu origem ao filme de David Cronenberg, 23 anos depois. Mas o texto original é muito mais perturbador. Perversão, escatologia, morte, sexo, drogas e crueldade se misturam. O tempo todo os personagens estão trocando fluidos corporais entre si e com automóveis, e por sua vez sendo manchados por combustível e lubrificante do motor. 

Ballard, personagem homônimo do autor, sofre um grave acidente de carro, em que um ocupante do outro automóvel morre. A partir daí, ocorre a aproximação de Robert Vaughan, um homem marcado por cicatrizes de acidentes, fascinado por desastres que vitimaram celebridades como James Dean, Albert Camus e Jayne Masfield. Vaughan dirige um decrépito Lincoln, mesmo modelo em que foi assassinado o presidente John Kenned, dos EUA, e persegue obsessivamente a ideia de se envolver em uma batida mortal com a atriz Elisabeth Taylor.

Crash é um livro datado, pois houve evolução do automóvel. Os efeitos da segunda colisão - quando os ocupantes do carro são jogados contra superfícies internas - foram muito reduzidos com a evolução dos itens de segurança. Não é mais comum bater contra o volante, menos ainda contra o painel - claro, desde que se esteja usando cinto de segurança.
O vidro laminado do automóvel não estilhaça sobre as pessoas. Mesmo a referência à Varig - a maior parte da história se passa nas imediações do aeroporto de Londres - denuncia a idade do livro.
 

Crash poderia ser um livro mais curto. O texto por vezes torna-se repetitivo e cansativo. Pelo grotesco, seria uma história improvável. Mas basta pensar nas pessoas que insistem em não usar cinto de segurança, ultrapassam em alta velocidade pela direita, levam crianças soltas no banco dianteiro, dirigem em estado de embriaguês avançada. Os Vaugahn estão por aí.

J. G. Ballard nasceu na China de pais ingleses. E passou parte de sua infância em um campo de prisioneiros, até o fim da Segunda Guerra Mundial. Suas lembranças desse período resultaram no romance autobiográfico Império do Sol, transformado em filme por Steven Spielberg.




quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O caminho de Guermantes


A edição traz notas de rodapé que ajudam na leitura

Neste terceiro volume de Em busca do tempo perdido, Marcel Proust substitui seus amores passados pelo fascínio pela duquesa de Guermantes, dama da alta aristocracia francesa, linda, culta, esnobe. Mais velha do que o jovem admirador, ela o ignora nos "encontros" tramados por ele nas ruas de Paris.

Boa parte da narrativa, porém, é ambientada nos suntuosos salões da elite parisiense, disputado por aristocratas de toda a Europa. Proust consegue ser aceito nas recepções da duquesa, que vive um casamento fracassado mas não perde a pose no ambiente fútil de seus chás e jantares. 

Fofocas, intrigas, bastidores do mundo dos teatros e das cortesãs, maneira elegante de chamar as prostitutas, como hoje se fala em garota de programa. Nada escapa ao autor, atento ao rococó dos olhares e gestos, à arrogância, inveja e despeito que permeava as relações nas grandes recepções.

O autor dedica uma página e meia à descrição do gestual quase ritualístico para os Guermantes apenas cumprimentarem alguém. Havia como que uma coreografia de maneiras afetadas para cada "subgrupo" da família, que envolvia passos, olhares e gestos de diferentes variações de esnobismo.

Proust elogia trajes e se fascina com algumas situações, mas não passa o tempo todo deslumbrado. E sabe ser bem maldoso e ferino nos comentários, como quando compara a presença e trajes da duquesa com a senhora de Cambremer "com um penacho de carro fúnebre verticalmente erguido nos cabelos". E tem suas tiradas de humor, como ao falar do marquês de Palancy, que parecia estar "dormindo, nadando, pondo um ovo ou simplesmente respirando".

A leitura de O caminho de Guermantes fluiu melhor para mim do que nos dois primeiros livros, possivelmente por estar mais habituado ao estilo de Proust e vários dos personagens já serem conhecidos. As notas de rodapé da edição da Editora Globo ajudam a contextualizar pessoas reais citadas pelo autor, ou aquelas que lhe serviram de referência. Há frequentes alusões a memórias de escritores e aristocratas do passado, citações e referências a textos literários, principalmente Victor Hugo. E um bom espaço dedicado à discussão sobre o caso Dreyfus, célebre episódio de acusação de traição e uma onda anti-semita na França. A tradução é de Mario Quintana.

Além de dissecar alma e exterior dos personagens, Proust põe sua sensibilidade e capacidade descritiva a serviço de obras de arte - principalmente pinturas - que surgem ao longo de O caminho de Guermantes. Suas observações acerca de um quadro equivalem a uma aula sobre arte. Curioso também como o tempo passa, a tecnologia oferece novas alternativas, mas os hábitos não mudam. Na referência a uma pintura, o autor fala como o personagem fica feliz apenas porque jantou com alguém cujo antepassado foi retratado em quadro.

Há momentos tocantes, como a doença da avó do autor, uma de suas pessoas mais queridas. Ela também dá ensejo para Proust falar sobre uma novidade, o telefone. A tentativa de  conversar com a avó pelo aparelho, um canal ainda precário, não é nada fácil, mas a descrição da nova tecnologia é poética.

Se gostei de O caminho de Guermantes? Muito. Ainda não cheguei à metade de Em busca do tempo perdido, mas já deu para sentir porque os leitores se deixam fascinar pela obra de Marcel Proust.

Curiosidade Mórbida

Lançamento do original foi em 2003

Esse livro poderia ser muito mais interessante, mas o resultado das pesquisas e escrita da autora é desigual. Há capítulos muito esclarecedores sobre o uso do corpo de pessoas mortas para doação de órgãos, no ensino da medicina, na pesquisa e para o avanço do conhecimento, por exemplo, sobre recursos de segurança que podem salvar vidas em acidentes de carro ou avião.

Em muitos trechos, porém, Mary Roach desvia-se do tema principal. Põe o foco - superficialmente - em uma pesquisa sobre crucificação - e d
eixa de lado hábitos culturais como "montar" uma foto de família com uma pessoa morta, ou o Dia de Finados em localidades da África e da América.

E, pior, a autora insiste em fazer humor. Falha miseravelmente. Nunca perde o respeito pelos mortos, um compromisso que assume logo nas primeiras páginas, e cumpre. Mas suas tentativas de fazer graça não funcionam. Fiquei com a impressão de que nesse livro a intenção de Mary Roach foi mesmo explorar a morbidez.




domingo, 27 de dezembro de 2015

Romance de formação

Romance de estreia do autor

Como é bom ler um livro para prestigiar um amigo e poder falar, sem preocupação em poupar sua autoestima: gostei! Linha verde é definido pelo próprio autor como um romance de formação. Ocorre que Vinicius Galera trabalha a pouco metros de onde eu sento, e seria algo constrangedor não gostar da leitura (já aconteceu...). 

Nascido em uma cidade do interior paulista, Ivan vem para a capital tentar a sorte profissional. Uma história comum, mas muito bem contada em primeira pessoa com momentos inspirados. Namoradas, flertes, empregos, roubadas, pombos e até um leão se alternam diante do jovem Ivan em suas andanças pela cidade.

A leitura é ágil, agradável e reserva episódios desconcertantes. Ivan sonha ser um escritor, e aí está um desafio solitário e quase egoísta. Nada ou alguém garante que sua obra será publicada um dia, isso é muito raro. Vinicius Galera encarou o desafio com talento.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

"Essa máquina mata fascistas"




A história é quase “comum”: infância marcada por tragédias, como incêndios nas casas onde morou, internação da mãe por força de uma doença neurológica, adolescência difícil no período da grande depressão econômica nos EUA. Uma vida nômade, de cidade em cidade atrás de empregos, viajando clandestino como “vagabundo de trens”, colhendo frutas na próspera Califórnia.

Mas Woody Guthrie somou seu talento nato como músico e poeta à experiência de vida para compor centenas de músicas que, entre outros assuntos, falam da vida no campo, política e até temas infantis. Influenciou gerações de artistas, como Bob Dylan, Bruce Springsteen e Joan Baez. Em seu livro de memórias Crônicas - Volume Um, Dylan cita com frequência Guthrie, a quem visitava no hospital na fase final de sua vida.

Woody Guthrie começou a gravar, apresentava-se em público e improvisava canções. Sua canção mais conhecida, This land is your land, tem cunho político e social, e foi composta como uma resposta crítica a God bless America, que Guthrie classificava como “irreal e complacente”. Seu violão ostentava a inscrição "Essa máquina mata fascistas".

Guthrie morreu em 1967, aos 55 anos de idade, vítima de uma doença neurológica degenerativa que provavelmente já havia afetado sua mãe. Além de sua extensa obra musical, achou tempo ainda para escrever um livro de memórias, Bound for glory. Diferentemente de outros jovens astros que surgem por aí, Guthrie já tinha muito o que contar aos 31 anos. E talento de sobra para isso, em um texto sensível, por vezes divertido, que flui como um longo poema.

Bound for glory não foi traduzido para o português. A obra pode ser comprada em livrarias na internet, em inglês. Mas experiência interessante é ouvir a versão audiolivro, gravada por Arlo, um dos oito filhos de Guthrie. Seguidor dos passos de Woody, Arlo compõe e interpreta principalmente músicas folk de cunho social. Como bônus, além das inflexões de voz que Arlo conhecia tão bem de seu pai, ouve-se um trecho da original Bound for glory, a música que dá título ao livro.




A versão audiolivro é narrada por Arlo Guthrie, filho de Woody

domingo, 20 de dezembro de 2015

Se você é impressionável, não leia sozinho

Entre outras obras, livro inspirou de Arquivo X a Prometheus

Nem todo texto de Howard Phillips Lovecraft seduz o leitor que se dispõe a conhecer sua obra, que passou por fases bem oníricas. A fim de apreciar melhor as “viagens” do autor, vale começar por um título como Nas montanhas da loucura, publicado em fascículos em revistas populares em 1931.

O livro traz o relato, feito em primeira pessoa, de uma expedição científica à Antártica. Bem ao estilo do autor, é um sobrevivente que relata os resultados da incursão a territórios antes inexplorados, e que, defende o narrador, devem se manter assim para o bem da humanidade.

O tom de alerta se justifica porque os pesquisadores que voaram em direção ao pólo sul se defrontam com montanhas gigantescas, guardiãs de segredos de civilizações que antecederam a humanidade em milhões de anos. Depois que os contatos por rádio silenciam, o narrador vai em busca do local do acampamento, onde encontra morte e destruição em meio a montanhas e construções arquitetônicas titânicas.

A exploração de túneis colossais vai revelando vestígios de civilizações ancestrais. Enquanto a interpretação das obras arquitetônicas e esculturas vai revelando a terrível guerra entre alienígenas que chegaram ao planeta e se dividiram entre o fundo dos oceanos e a terra firme, odores e galerias misteriosas permitem descobrir o trágico destino dos exploradores desaparecidos.

O clima criado pela narrativa de Lovecraft mais do que justifica o fato de tantos autores de livros e filmes se inspirarem livremente em sua obra. No ambiente gelado e desértico das regiões mais remotas do continente antártico, surge boa parte da mitologia criada pelo autor. Criaturas de formas, tamanhos  e organismos desconcertantes como Mi-gos, Cthulhu, Celephais e Innsmouth são apresentados ao leitor.

Se você gosta de ficção científica e admira a obra de Lovecraft, não perca mais tempo. Essa história é um deleite. Se você é muito impressionável não deixe para ler Nas montanhas da loucura quando a família inteira viajou e está sozinho em casa.