sábado, 30 de julho de 2016

Retrato de um Brasil que pouco muda

A Lei Áurea e a República nada significaram na vida de Lima Barreto

A vida bateu forte em Lima Barreto. O autor nasceu em 13 de maio de 1881, ironicamente exatos sete anos antes da Lei Áurea, que, ao menos no papel, decretou o fim da escravidão. Em 15 de novembro de 1889, quando ele tinha oito anos e meio de idade, foi proclamada a República.

Nem uma mudança nem outra alteraram em nada a vida de pessoas como Lima Barreto, descendente de escravos. A monarquia acabou, mas não os privilégios da aristocracia, nem o preconceito contra negros e mulatos, que acompanhou toda breve vida do autor, que chegou a pensar em suicídio aos 15 anos de idade.

A perda prematura da mãe para a tuberculose e do pai para a loucura obrigaram Lima Barreto a abandonar a faculdade a fim de sustentar a família. As portas de fecham, as humilhações se sucedem, e o autor vai buscar conforto na boemia e no álcool.

Lima Barreto começa a trabalhar em redações de jornais, revistas, publicações acadêmicas e anarquistas. Sua principal e mais conhecida obra –Triste fim de Policarpo Quaresma – chegou ao mercado sob a forma de folhetins publicados no Jornal do Commercio.

Mas a vida desregrada acaba levando-o a sucessivas internações no Hospício Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro. É o "cemitério dos vivos" que dá titulo à obra, referência a uma localidade na China que teria sido reportada por um diplomata ocidental. Nela, portadores de hanseníase (lepra) eram deixados para sobreviver da maneira que pudessem.

O relato que Lima Barreto faz através do personagem-narrador Vicente Mascarenhas é dolorido. O ambiente de decadência física e mental mescla alcoólatras, epiléticos, doentes de fato e por “opção” – assassinos de esposas e companheiras que por conveniência se passam por “loucos”.

O autor faz o retrato triste de pessoas e situações, homens, mulheres e crianças, médicos e funcionários que vivem à margem do mundo dos "normais". Ele é mais um “louco”, mas está atento a registra tudo com sua prosa de vanguarda e contestadora para a época.

Lima Barreto morreu em casa em 1922, aos 41 anos, de um ataque do coração. O Cemitério dos Vivos foi publicado em 1919 e está em domínio público. Ainda que fosse preciso pagar, a leitura desse romance pré-modenista é necessária para entender o Brasil. Sendo gratuita, é obrigatória.



sexta-feira, 22 de julho de 2016

O maior escritor da história

O último lançamento do autor

O autor mais publicado da história completa 70 anos hoje. Filho de um português com uma japonesa, José Carlos Ryoki de Alpoim Inoue formou-se em medicina pela USP em 1970. Dezesseis anos depois, abandonou a profissão para se tornar o escritor mais fecundo, reconhecido pelo Guiness Book of Records.

É possível que você nunca tenha ouvido falar dele. Praticamente todas as suas obras foram livros de bolso publicados sob 39 pseudônimos; uma exigência dos editores. Perto de completar mil títulos, partiu para romances assinados como Ryoki Inoue, como se tornou conhecido - e reconhecido. Calcula-se que 1.086 de seus trabalhos foram publicados nesses 30 anos de atividade literária.

Você pode até argumentar que livros de bolso não são propriamente literatura. Mas separe um tempo para ouvir a entrevista de Ryoki Inoue no Ghost Writer, excelente podcast de literatura (infelizmente hoje pausado). Você vai se convencer de que ele é o autor que muito escritor gostaria de ser.

sábado, 16 de julho de 2016

Crime, culpa e castigo

O livro tem uma bela - e muito adequada - edição
Um livro todo negro, um título que remete à ausência de luz e quatro contos que falam sobre crime e culpa. Um pacote bem feitinho para os fãs de Stephen King, mas vale saber que de sobrenatural essa obra tem pouco, e esse pouco é justamente a narrativa mais fraca de Escuridão total sem estrelas

O melhor conto é o primeiro, 1922. O título se refere à data em que se passam os episódios envolvendo uma família de agricultores - mãe, pai e filho. O cenário é  uma propriedade rural que a mulher deseja deixar para trás, à revelia de seu marido, que acaba levando o filho à cumplicidade em um plano criminoso.

O que se desenrola é um crescendo de alucinação e culpa, que resulta em uma espiral de mais crimes e remorso. King sugere o sobrenatural, mas o horror está no mundo real, no interior da mente dos personagens.

Gigante do volante também é um bom conto, mas o autor cai no seu defeito de se enrolar um pouco na narrativa. Perdendo fluidez em alguns momentos, a leitura ainda assim se segura porque King consegue manter a expectativa pelo que virá a seguir. Como os personagens vão agir, quais serão as transformações no comportamento das pessoas. E, claro, o leitor se pega pensando no que faria no lugar dos envolvidos na trama.

A narrativa de vingança resvala um tanto para o inverossímil, mas funciona. King só abusa do cacoete de contrapor, com algumas palavras após o que seria o ponto final, o que acaba de afirmar nas últimas linhas. É um recurso de estilo que torna o texto um tanto chato e previsível. Você sabe que ao final de quase todo parágrafo ele vem com esse contraponto.

Extensão justa é o conto mais curto, o único de conteúdo sobrenatural e destoa do livro. Não chega a comprometer muito a experiência da leitura, uma vez que também é a narrativa mais curta. Mas é um conto que qualquer fã bem treinado do autor poderia ter escrito.

Em Um bom casamento King também não recorre ao sobrenatural e volta ao tema de violência contra a mulher. No posfácio do livro, o autor fala de onde tirou inspiração para os quatro contos, esse último deles praticamente a reprodução de um caso real. King faz uma crítica nada velada que poderia muito bem ter sido inspirada nos recentes fatos ocorridos no brasil, em que a mulher é a primeira suspeita de uma violência que sofreu. Mas o autor está falando de seu próprio pais, os Estados Unidos, e o livro foi lançado em 2009.

Escuridão total sem estrelas tem 390 página e tradução de Viviane Diniz. Foi lançado em edição muito bem feita da Suma de Letras: o título é impresso em verniz cinza-escuro sobre a capa preta, mesma cor das lombadas. Nada mais apropriado ao autor e ao título do livro.

domingo, 3 de julho de 2016

Poderia ser divertido

O conteúdo não entrega o que o título sugere
Marcado pela doença seguida de morte da mãe, o autor se refugia na adolescência no universo dos RPGs, ou jogos de representação. Já adulto, torna-se jornalista, escritor e poeta, mas não deixa para trás a dúvida se jogos do gênero seriam ou não uma forma de escapismo. E, já aos quarenta, parte para uma jornada de investigação que resulta em "Tudo que um geek deve saber". Participa de encontros que envolvem centenas de pessoas em fantasias e simulações, visita um castelo em construção, entrevista jogadores de videogames com milhões de jogadores, viaja à Nova Zelândia para conhecer os locais em que "O senhor dos anéis" foi filmado.

Assim como o próprio Ethan Gilsdorf, fica a impressão de que muitos dos jogadores são ou viciados ou apenas pessoas tristes, refugiadas em mundos de fantasia. A maior parte apenas de diverte, menos o leitor, que encara um livro chato. Pelo ambiente que se encontra em convenções de fantasia, HQs e ficção cientifica, com pessoas usando fantasias de heróis e personagens de fictícios, poderia ser um texto bem divertido. Mas é apenas desnecessariamente longo e repetitivo.

sábado, 2 de julho de 2016

Murphy é desconcertante

Humor negro tempera o romance do irlandês Samuel Beckett
Sem roupa, amarrado a uma cadeira de balanço, em busca da privação de sensações no interior de um pombal condenado. É assim que o leitor é recebido por Murphy, personagem-título do romance de Samuel Beckett. Desconcertante desde as primeiras linhas, o livro lançado em 1938 é uma boa porta de entrada para o fascinante universo literário do autor irlandês que se tornou mais conhecido pela peça Esperando Godot.

Sua obra, porém, vai muito além da dramaturgia, e Murphy é uma ótima mostra disso. A narrativa breve - o livro tem apenas 256 páginas na edição da Cosac Naify -, mas densa, retrata a vida do personagem-título, sua amante Celia e de um grupo de amigos em suas andanças e diálogos por Londres.

O texto nada convencional mescla erudição, jogos de palavras e muitas referências a filósofos, escritores e mesmo passagens da Bíblia. Beckett brinca com a atenção do leitor, com nomes de personagens clássicos - Romieta e Julieu - e com o som de palavras, como ex-mordomo, que soa algo como cerveja extra forte. Associação nada sutil com a Irlanda, terra de marcas como a Guinness.

Celia, uma prostituta, insiste para que Murphy consiga um trabalho. Ele acaba se empregando como auxiliar de enfermagem em um manicômio, onde rapidamente cria forte empatia com os internos. A crítica ao tratamento dispensado aos doentes é pouco velada, mas mesmo em meio a um ambiente de alienação mental, Beckett encontra espaço para toques de humor negro, como o homem que planeja o suicídio prendendo a respiração.

Murphy tem tradução e notas de Fábio de Souza Andrade. Essas notas ajudam - e muito - na compreensão do texto, que, pouco convencional, é um desafio e um estímulo à atenção do leitor. Só é preciso atentar para o fato de que elas estão reunidas no fim do livro, sem que as palavras, nomes e trechos a que fazem referência tenham qualquer destaque no texto.

Gravei uma conversa de 20 minutos sobre Beckett e Murphy com Bruno Andrade, estudante de Artes e fã do autor: podcast