domingo, 31 de maio de 2015

Matar um rouxinol

Lançado em 1960, o livro ganha uma sequência este ano

Semanas antes de completar 89 anos (foi em 28 de abril), a escritora norte-americana Harper Lee reapareceu na mídia anunciando que a sequência de O sol é para todos, escrita há 60 anos, chegaria finalmente às livrarias ainda em 2015. Bastou para que uma nova onda de interesse promovesse sua obra lançada em 1960, premiada com o Pulitzer no ano seguinte e com o Oscar de melhor roteiro adaptado em 1962, ao ser levada para o cinema.

Em meados dos anos 1930, na pequena cidade fictícia de Maycomb, Alabama, sul dos Estados Unidos, Scout, uma garota de oito anos de idade, vive com seu irmão Jem e o pai viúvo, o advogado Atticus Finch, sob a tutela de Calpúrnia, uma empregada negra. A memória da Guerra da Secessão ainda é presente e o preconceito racial, muito forte.

Scout (na verdade, Jean Louise) narra sua visão do mundo, da pobreza, da velhice e da questão racial pelo olhos de uma criança. O sol é para todos começa leve, divertido, mas vai surgindo a impressão, a princípio sutil, de que a harmonia entre os habitantes não é boa.

Com a evolução da trama, questões como fazer justiça, dignidade humana e honra profissional se impõem aos irmãos. Muito da inocência vai ficando para trás, mas eles ainda são crianças, e o alívio cômico das travessuras faz um contraponto com os momentos de maior dramaticidade. O texto de Lee Harper faz sentir saudades da infância.

Após mais de meio século, O sol é para todos continua sendo uma obra incrivelmente atual. Especialmente no momento em que a questão racial volta à pauta nos Estados Unidos, a Europa se vê às voltas com o problema da imigração, a intolerância religiosa se converte em violência no mundo e temas como a criminalidade e a maioridade penal são discutidos no Brasil, abrindo espaço para propostas grotescas e medievais.

Ainda sem título em português, Go set a watchman foi oferecido pela autora às editoras antes até de To kill a mockinbird, nome original de O sol é para todos. A obra narra a vida pessoal de profissional de Scout cerca de 20 anos após os eventos que marcaram sua infância em Maycomb.

A versão em português do novo livro deve chegar ao Brasil no segundo semestre.

Por onde andará Stephen Fry?

Zoe Deschanel, no papel de Trillian, e o robô depressivo Marvin

O guia do mochileiro das galáxias, a sarcástica “trilogia de cinco livros” do inglês Douglas Adams, surgiu como série na rádio BBC, em 1978. Depois vieram os livros, adaptações para teatro, TV, cinema, quadrinhos e vídeo games. Faltou algo? A volta às origens.

Quem ainda não conhece a história, vale a pena tentar. Quem já viu, leu ou jogou, vale ainda mais ouvir, e não só por tudo ter começado no áudio, mas porque o narrador da versão audiolivro é Stephen Fry, ator e comediante britânico, entre outras atividades artísticas.

Fry faz mais do que narrar com competência durante as quase seis horas de duração do audiolivro. Suas interpretações de personagens como o robô depressivo Marvin ou o computador descolado são hilárias, e enriquecem ainda mais a divertida trama.

Por onde andará Stephen Fry? é o título de um álbum de 1997 de Zeca Baleiro, cantor, compositor e cronista maranhense. Dois anos antes, ele havia lançado a canção Stephen Fry em homenagem ao inglês, que ficou sabendo e gostou.

Stephen Fry fez vários trabalhos com Hugh Laurie, que ficou muito conhecido como Dr. House, e anda por aí, atuando, escrevendo e emprestando sua voz e talento para o texto de Douglas Adams.  Produzido pela Penguin Random House, The hitchhiker’s guide to the galaxy é oferecido, entre outros canais, na iTunes Store e na Audible. 

domingo, 24 de maio de 2015

O sombrio rei de amarelo

A leitura do texto da peça leva as pessoas à loucura

Uma das piores coisas que podem ocorrer a uma obra de arte é o esquecimento. As editoras podem deixar de investir em novas edições de um título, os lançamentos se sucedem e o livro perde espaço nas estantes mais visíveis das livrarias. Ao longo de décadas, ele desaparece, ou fica limitado a círculos restritos de leitores. Até que um "acaso" o resgata. Foi o que aconteceu com O rei de amarelo, do norte-americano Robert W. Chambers, lançado em 1895 e citado na festejada série de TV True detective.

O livro foi lançado no Brasil há um ano pela Intrínseca, com tradução de Edmundo Barreiros e ótima introdução de Carlos Orsi. O rei de amarelo na verdade é uma peça teatral cuja leitura leva as pessoas à loucura. Qualquer semelhança com o Necromicon, de H. P. Lovecraft não é merca coincidência: o escritor de Providence leu Chambers. Sua influência é reconhecida também por Raymond Chandler a Neil Gaiman, passando pelo onipresente Stephen King. Chambers, por sua vez, toma emprestado vários nomes e termos criados pelo escritor Ambrose Bierce.

O rei de amarelo é um "personagem" dos primeiros contos do livro, tramas distintas mas interligadas ao menos pela citação da obra maldita. As narrativas transitam entre o gótico, o fantástico, o romance e a ficção científica, numa intrigante atmosfera de mistério e viagens oníricas. O primeiro conto envolve um sr. Wilde, que remete diretamente a Oscar Wilde, como um "reparador de reputações".

Já na que pode ser considerada a segunda parte do livro, Chambers inspira-se livremente em seu passado como pintor de quadros, e ambienta suas narrativas em Paris, particularmente no Quartier Latin povoado de estrangeiros estudantes de arte. A vida libertina e amores impossíveis são tema recorrente, com um leve toque de fantasia e a influência da pintura: há momentos em que o autor "pinta" cenas em seus textos.

Esses contos também são interligados, com várias e repetidas referências internas. Em "A rua da primeira bomba", Chambers envolve o leitor na angústia de uma Paris sob cerco do exército da Prússia e no desespero de um personagem que se lança ao front de batalha.

Chambers morreu em 1933, rico e famoso por romances água-com-açúcar dos quais ninguém se lembra mais. Nem fazem falta. Mas a volta de O rei de amarelo para as prateleiras das livrarias é um verdadeiro prêmio para quem aprecia literatura fantástica.

domingo, 17 de maio de 2015

"Mais nojenta do que um purgante"

O autor gostava de balas e doces. Mas queria beber como os homens
Jack London é mais conhecido por Caninos brancos e O apelo da selva, obras que retratam parte das aventuras do autor na Corrida no Ouro, nos extremos gelados da América do Norte. Quem se dá ao trabalho de ler as poucas páginas - por vezes linhas - dedicadas a apresentar o autor nos livros, fica sabendo que London viveu pouco - 40 anos - e intensamente. Memórias alcoólicas é um relato em que fala de um personagem que o acompanha desde os 5 anos de idade, John Barleycorn. O "pé-de-cana", ou álcool.

É um livro em tom de confissão, em que o "poder social" das bebidas alcoólicas e dos ambientes e situações em que elas são consumidas são apresentados e comentados por London, que, curiosamente, afirma insistentemente não gostar das bebidas:  "O álcool tinha sido para mim ma coisa assás repugnante - mais nojenta do que um purgante. Até hoje não suporto o gosto."

Mas "a taverna era o lugar da congregação", onde London fazia amigos, arrumava trabalho, afirmava sua masculinidade, era aceito entre homens feitos, alimentava sua sede de aventura. E era ainda apenas um adolescente, que preferia correr secretamente para o quarto com um livro na mão e os bolsos cheios de "balas  de canhão", um puxa-puxa que podia durar uma hora.

Ainda criança, poucos anos antes do começo do século 20, Jack London trabalhava em fábricas insalubres, por longas jornadas de até 20 horas e salários minguados. Adolescente, voltou a enfrentar a mesma exploração como carvoeiro em uma empresa de eletricidade, fazendo o trabalho de dois homens por 29 dias seguidos, com um dia de folga por mês.

Em muitos momentos, John Barleycorn era uma fuga. A leitura de Memórias alcoólicas chega a cansar em alguns trechos com a repetição insistente desse nome. London se afasta da bebida por longos períodos, diz poder deixar de beber quando deseja, mas volta até uma fase melancólica de sua vida. Termina defendendo apaixonadamente a proibição do álcool, em discussão nos EUA na época. Isso justificou seu apoio ao direito das mulheres ao voto.

Autodidata, Jack London era dono de uma disciplina de ferro. Quando se determinou a viver de escrever, produzia religiosamente mil palavras por manhã. Escreveu muito, sobre suas aventuras, suas convicções políticas, prisões, sobre John Barleycorn, sobre o medo da morte. Até o dia em que ela levou a melhor.

sábado, 2 de maio de 2015

Cheiro de Goiaba

O aroma dessa goiaba é irresistível
Há quem rejeite a fruta por receio de comer o bicho, e tem gente que nem sequer suporta seu cheiro. Mas para quem boa literatura é um prazer, esse Cheiro de Goiaba não pode passar despercebido.

Publicado em 1982, o livro é a transcrição de longas conversas de Gabriel García Márquez com seu amigo e conterrâneo Plinio Apuleyo Mendoza. O vilarejo natal, a família, a descoberta de suas raízes culturais, uma mescla dos índios da região da costa do Mar das Antilhas com os avós da Galícia e os negros trazidos de Angola.

No ritmo das conversas boêmias que marcaram sua juventude, Márquez lembra das longas tardes lendo poesia sentado no banco de um bonde, quando contava com a companhia dos livros contra a solidão. Fala como tantos autores (e os principais deles) influenciaram sua obra, as inspirações originadas em situações que viveu e até no peso da geografia na criação de personagens.

Pessoas e episódios da vida do autor que inspiraram inesquecíveis personagens de seus contos e romances são lembrados, assim como as dificuldades enfrentadas até sua obra começar a ser reconhecida - após tantas recusas de boas editoras, um caso clássico no mercado editorial. Mendoza registra momentos em que Gabo chorou, um menino de 13 anos sozinho em uma Bogotá muito diferente de sua Aracataca tropical, ou um homem maduro cruzando uma ponte do rio Sena, em Paris, financeiramente quebrado. 

Cheiro de Goiaba dedica um capítulo às amizades de Márquez com autores como Grahan Greene e às suas opiniões políticas. Gabo, que foi amigo pessoal do general Omar Torrijos, homem forte do Panamá, do presidente francês François Mitterrand e de Fidel Castro, acaba contando indiscrições, como revelar que o líder cubano "é um leitor voraz, amante e conhecedor muito sério da boa literatura de todos os tempos".