quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O caminho de Guermantes


A edição traz notas de rodapé que ajudam na leitura

Neste terceiro volume de Em busca do tempo perdido, Marcel Proust substitui seus amores passados pelo fascínio pela duquesa de Guermantes, dama da alta aristocracia francesa, linda, culta, esnobe. Mais velha do que o jovem admirador, ela o ignora nos "encontros" tramados por ele nas ruas de Paris.

Boa parte da narrativa, porém, é ambientada nos suntuosos salões da elite parisiense, disputado por aristocratas de toda a Europa. Proust consegue ser aceito nas recepções da duquesa, que vive um casamento fracassado mas não perde a pose no ambiente fútil de seus chás e jantares. 

Fofocas, intrigas, bastidores do mundo dos teatros e das cortesãs, maneira elegante de chamar as prostitutas, como hoje se fala em garota de programa. Nada escapa ao autor, atento ao rococó dos olhares e gestos, à arrogância, inveja e despeito que permeava as relações nas grandes recepções.

O autor dedica uma página e meia à descrição do gestual quase ritualístico para os Guermantes apenas cumprimentarem alguém. Havia como que uma coreografia de maneiras afetadas para cada "subgrupo" da família, que envolvia passos, olhares e gestos de diferentes variações de esnobismo.

Proust elogia trajes e se fascina com algumas situações, mas não passa o tempo todo deslumbrado. E sabe ser bem maldoso e ferino nos comentários, como quando compara a presença e trajes da duquesa com a senhora de Cambremer "com um penacho de carro fúnebre verticalmente erguido nos cabelos". E tem suas tiradas de humor, como ao falar do marquês de Palancy, que parecia estar "dormindo, nadando, pondo um ovo ou simplesmente respirando".

A leitura de O caminho de Guermantes fluiu melhor para mim do que nos dois primeiros livros, possivelmente por estar mais habituado ao estilo de Proust e vários dos personagens já serem conhecidos. As notas de rodapé da edição da Editora Globo ajudam a contextualizar pessoas reais citadas pelo autor, ou aquelas que lhe serviram de referência. Há frequentes alusões a memórias de escritores e aristocratas do passado, citações e referências a textos literários, principalmente Victor Hugo. E um bom espaço dedicado à discussão sobre o caso Dreyfus, célebre episódio de acusação de traição e uma onda anti-semita na França. A tradução é de Mario Quintana.

Além de dissecar alma e exterior dos personagens, Proust põe sua sensibilidade e capacidade descritiva a serviço de obras de arte - principalmente pinturas - que surgem ao longo de O caminho de Guermantes. Suas observações acerca de um quadro equivalem a uma aula sobre arte. Curioso também como o tempo passa, a tecnologia oferece novas alternativas, mas os hábitos não mudam. Na referência a uma pintura, o autor fala como o personagem fica feliz apenas porque jantou com alguém cujo antepassado foi retratado em quadro.

Há momentos tocantes, como a doença da avó do autor, uma de suas pessoas mais queridas. Ela também dá ensejo para Proust falar sobre uma novidade, o telefone. A tentativa de  conversar com a avó pelo aparelho, um canal ainda precário, não é nada fácil, mas a descrição da nova tecnologia é poética.

Se gostei de O caminho de Guermantes? Muito. Ainda não cheguei à metade de Em busca do tempo perdido, mas já deu para sentir porque os leitores se deixam fascinar pela obra de Marcel Proust.

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