terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O mestre do indizível

A capa da biografia entrega muito de Lovecraft, um autor totalmente misturado à sua obra

Escritores que morrem antes de serem reconhecidos fora de seu círculo de amigos mais próximos e chegam a passar fome, para anos ou décadas depois seu trabalho se converter em uma mina de dinheiro nas mãos de desconhecidos, são personagens comuns na história da literatura. Howard Phillips Lovecraft não escapou a essa sina.
Muito do que se vê hoje no cinema e na TV, lê nos livros, quadrinhos e mangás, ouve na música ou mesmo joga em games nasceu em sua mente intrigante. Autores como Alan Moore e Stephen King confessam inspiração livre no trabalho sombrio de Lovecraft, que ganhou uma biografia assinada por S.T. Joshi. Nascido na Índia e radicado nos Estados Unidos, Sunand Tryambak Joshi é um estudioso e admirador da obra do autor. A vida de H. P. Lovecraft foi lançada no final do ano passado em português pela editora Hedra, com venda exclusiva na Livraria Cultura.
Trabalho competente, a biografia é toda referenciada com notas ao fim de cada capítulo. Em alguns trechos, o texto aprofunda o relato da vida de Lovecraft com um tom um tanto acadêmico, mas embora a fluência da leitura perca o ritmo, a construção psicológica e social do autor ganha muito em consistência.
Garoto mimado pela mãe e pelas tias em sua amada cidade de Providence, Lovecraft foi precoce em muitas coisas: na perda do pai, na alfabetização e interesse pela poesia, nas leituras de Edgar Allan Poe e da Balada do Velho Marinheiro aos 6 anos de idade, na rejeição à educação religiosa e ao ensino formal.
Ainda menino, o autor produzia, imprimia e vendia pequenas publicações com artigos e poesias. O que se converteu nos fanzines dos anos 1970 e 1980, e nos blogs de hoje, Lovecraft e seus amigos praticavam nos idos de 1900. Ao longo de sua breve vida, ele participou de ativos grupos de imprensa amadora que promoviam a impressão e publicação de trabalhos com recursos caseiros.
Lovecraft gostava tanto de Química que montou um laboratório em casa. E se apaixonou pela Astronomia: frequentou um observatório por um tempo, escreveu sobre o assunto e chegou a ter três telescópios em casa. Quanto dessa observação, o estudo do cosmos e revelações científicas como as teorias da Relatividade e Quântica influenciaram sua obra vai sendo revelado no atento e documentado retrato que Joshi traça.
O autor sentia-se insignificante diante do universo, sentimento que transferia para toda a humanidade. Daí resultam perturbadoras sequências oníricas e criaturas indescritíveis que transcreve de sua imaginação para o papel em histórias ora recusadas, ora remuneradas por centavos de dólar por palavra.
Quando recebia alguma coisa pela venda para revistas populares - as pulp fictions - Lovecraft mal conseguia pagar suas contas. Mas não abria mão de seu maior prazer: viajar e fazer longas caminhadas por bairros e cidades de arquitetura colonial.
A obra do autor, morto em 1937 aos 46 anos, foi descoberta aos poucos. E, embora composta por contos de qualidade desigual, vem ganhando antologias, edições ilustradas e comentadas. No Brasil, nos anos 1980, antologias foram publicadas pela editora Francisco Alves; a editora Iluminuras publicou outras nos anos 2000. Agora a Hedra vem lançando vários títulos. 
Caprichadas edições especiais, publicadas principalmente nos EUA, têm chegado às boas livrarias daqui. Mas procure. Num domingo, vi um exemplar de The new annotated H. P. Lovecraft, com prefácio do Alan Moore, na vitrine da Livraria Cultura no Bourbon shopping. A qualidade do livro me chamou a atenção, o preço era ótimo, mas parecia haver apenas aquele, com uma etiqueta colada que rasgaria a capa. A atendente da loja bem que tentou. Mas havia outro exemplar, a moça atenciosa descobriu. Estaria na seção Geek, ali mesmo, no mezanino. Loja cheia, me aventurei sozinho, e fui descobrir o volume escondido atrás de uma fileira de mangás, na prateleira junto ao piso, invisível para quem estava de pé.
Procurem, leitores contemporâneos. Esse é um privilégio nosso.
Lovecraft não chegou a ver um livro seu encadernado em capa dura. 


Este eu quase não encontro


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