segunda-feira, 9 de julho de 2018

Olhar sem ver

Perturbadora fábula em que não se pode ver quem está ao lado  

Os verbos "desver", "desouvir" e "dessentir" são usados com frequência nessa obra do escritor e ativista político britânico China Tom Miéville. E querem dizer exatamente o que sugere sua leitura: você vê, mas não pode enxergar o que está vendo, escuta sem ouvir, sente, mas não apreende. Alguma familiaridade com relação ao motorista que "desvê" o pedinte tanto à janela de seu carro parado no semáforo?

Para não correr o risco de estragar a experiência da leitura de "A cidade e a cidade", isso é mais do que o bastante para falar da experiência de viver em Beszel ou Ul Qoma. As duas cidades que justificam o título do livro ocupam o mesmo espaço geográfico, mas são separadas por idiomas, culturas e administrações diferentes. Ver algo ou alguém da outra cidade é um grave delito.

O assassinato de uma jovem estudante envolve o inspetor Tyador Borlú, do Esquadrão de Crimes Hediondos de Beszel. É o começo de uma trama policial com traços de distopia, no cenário desconcertante das cidades vigiadas pela misteriosa e onipresente Brecha, capaz de interferir ao mínimo deslize dos cidadãos. 

Adendo da editora Boitempo lembra que "A cidade e a cidade" foi publicado no Brasil em 2014, ano em que se celebrou o aniversário de 25 anos da queda do Muro de Berlim. E também fazia 20 anos que os EUA começaram a construir seu muro na fronteira do México e 12 que Israel fazia o mesmo na Cisjordânia, entre outras obras de separação física em curso no mundo.

Assim como as duas cidades imbricadas, a leitura desse livro oferece várias interpretações. Chamar de ficção científica ou distopia urbana é pouco, até porque a tecnologia retratada na obra é quase toda contemporânea. Miéville tem sido enquadrado na categoria de um autor de weird fiction, ou ficção estranha. Mas, querendo, basta pensar um pouco e olhar em volta para enxergar muitos paralelos na cidade onde você mesmo vive.

"A cidade e a cidade" foi lançado originalmente em 2009. Para chegar ao Brasil, passou pela tradução desafiadora e competente de Fábio Fernandes.

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