sábado, 15 de dezembro de 2018

Um retrato cru e feminino da guerra


Mulheres ucranianas das forças de resistência na antiga União Soviética

Esqueça aquelas imagens de guerra que são mostradas na TV, exibindo explosões a distância, ou sequências estilo videogame em que algum prédio é enquadrado por um avião a grande altitude, e o alvo vira fumaça nas imagens em baixa definição. A guerra revelada por Svetlana Aleksiévitch está mais próxima das campanhas por fundos da Cruz Vermelha ou dos Médicos sem Fronteira.

Mais do que isso, a jornalista e escritora bielorrussa mostra o ponto de vista das mulheres na Segunda Guerra Mundial. Cerca de um milhão delas, muitas ainda adolescentes, foram convocadas ou buscaram alistamento, e não raro brigaram para se juntar ao Exército Vermelho e às forças de resistência contra a invasão do exército nazista.

"Quando as mulheres falam, não aparece nunca, ou quase nunca, aquilo que estamos acostumados a ler e escutar: como umas pessoas heroicamente mataram outras e venceram. Ou perderam. Qual foi a técnica e quais eram os generais. Os relatos femininos são outros e falam de outras coisas. A guerra 'feminina' tem suas próprias cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nelas, não há heróis nem façanhas incríveis  Há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana", escreve a autora. 

Svetlana, que ainda não havia nascido à época da guerra, intercala reflexões sobre o papel da mulher no conflito, e seu impacto na sociedade em geral. Motivadas por vingança de pais e irmãos mortos logo no começo da invasão e pelo senso de dever de proteger seu país contra os fascistas, como chamam a todo momento, as mulheres eram quase que invariavelmente rejeitadas por superiores, por paternalismo ou por não acreditarem que dariam conta.

Mas elas cumpriram rigorosamente todas as atividades militares, incluindo as que envolvem grande força física, como tirar um homem ferido de dentro de um tanque em chamas e arrastá-lo ao longo de horas pelo campo de batalha. Em outros momentos, confessam sua feminilidade, a saudade de se maquiar, vestir e usar joias.

população civil não foi poupada pela violência da guerra. Atrocidades, tortura e assassinatos afetaram não-militares, incluindo idosos e crianças. Parte das pessoas passou a integrar o movimento de resistência, mantendo vínculos nas cidades e vilarejos. Atuavam como mensageiros, na observação e anotação de movimento e abastecimento de tropas.

Fruto de centenas de entrevistas e anos de trabalho, A guerra não tem rosto de mulher foi publicado em 1983, mas ganhou notoriedade internacional quando a obra de Svetlana ganhou o Nobel de Literatura em 2015. Através da Companhia das Letras, sua obra tornou-se conhecida e sucesso entre os leitores do Brasil.

Não espere um texto primoroso. Svetlana escreve bem, mas o valor de sua obra é o resgate sem filtros da memória dessas muitas mulheres por meio das entrevistas. Os relatos em geral são breves, alguns pouco mais longos, praticamente sem edição da autora, que se limita a incluir alguns pensamentos e impressões.

Mas prepare-se para um livro forte e emocionante. Há sequências duras, em que o que se vê de longe pela TV é mostrado de muito perto. Alguns episódios são especialmente trágicos, e as descrições dos efeitos dos bombardeios e dos combates corpo a corpo são impressionantes. As testemunhas da época descrevem, e quase é possível ouvir o som de ossos quebrando.

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